Regressam as fronteiras

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1. Em dez dias, a esperança de uma mudança de atitude dos governos da União Europeia face à crescente pressão dos cidadãos quase se evaporou. Está a acontecer aquilo que António Guterres apelou que não acontecesse: o caos está instalado no centro da Europa e ameaça generalizar-se. Os governos europeus, em vez de tentarem rapidamente uma estratégia comum, entretêm-se a levantar fronteiras a uma velocidade que é de muito mau augúrio. Bastou que a Alemanha fechasse “provisoriamente” a fronteira com a Áustria para que muita gente lhe seguisse o exemplo. É um péssimo sinal que não resolverá nenhum problema, deixando os refugiados num limbo que acabará por afectar a Europa no seu conjunto. Ao caos humanitário, os governos somam agora o caos político. Os que já chegaram a território europeu não desistirão por nada e vão encontrar uma maneira qualquer de ultrapassar as fronteiras.

Ontem, a Croácia, o caminho alternativo depois das brutalidades húngaras, começou a devolver os refugiados à Hungria. Budapeste já está a construir mais um muro, agora com a Croácia. Continuam a chegar às ilhas gregas milhares de refugiados por dia, que, em muitos casos, se instalam no centro de Atenas à espera de continuar viagem para a Alemanha. Os gregos votam hoje o próximo governo com um grau de desilusão enorme.

Angela Merkel, que animou a esperança de muita gente, está ficar mais cautelosa, graças às críticas vindas do seu próprio partido. Ontem, a imprensa dava conta das “preocupações” das autoridades de Munique com a sua tradicional Oktoberfest. Separar os refugiados dos alemães que, há quase 150 anos, se reúnem para beber muita cerveja é uma pequena amostra da linha ténue que separa a tolerância da rejeição.

A chanceler também aprendeu alguma coisa nos últimos dias. Encontrou mais resistência do que esperava dos seus parceiros para conseguir marcar um simples Conselho Europeu extraordinário na próxima quarta-feira. Noutras ocasiões, durante a crise do euro, eram esses parceiros que pediam mais uma cimeira extraordinária e era ela que se fazia de cara. Não que não tenha razão agora, porque a dimensão que esta crise atingiu apenas pode encontrar soluções ao nível dos líderes. O chefe da Diplomacia alemã, o social-democrata Frank-Walter Steinmeier, disse ontem o seguinte: “Não é possível que sejam apenas a Alemanha, Áustria, Suécia e Itália a carregar o fardo sozinhas, não é assim que a solidariedade europeia funciona.” Há solidariedade e solidariedade. Outro sinal desagradável que veio de Berlim é a peregrina ideia de suspender as transferências de fundos comunitários para os países que não aceitem uma redistribuição proporcional de refugiados. É perfeitamente admissível querer penalizar a Hungria e não apenas pelos refugiados e pelos muros. Há no Tratado de Lisboa uma cláusula que prevê a suspensão de um país por infracção continuada dos princípios democráticos fundamentais da União, que Viktor Orbán já infringia de toda a maneira e feitio sem precisar sequer desta crise. Devia-se começar por aí. Nada disto quer dizer que as palavras de Merkel sobre esta crise não fossem um estímulo, que ela tem a obrigação de honrar. Mas o que se passou na semana passada não é propriamente animador.

Tudo isto vai estar em debate no Conselho Europeu de quarta-feira. As divisões são enormes e já se viu que muitos governos, incluindo ocidentais, estão dispostos a acabar com Schengen com uma facilidade que volta a dar-nos a dimensão profunda e perigosa desta crise europeia, deixando uma enorme preocupação sobre o futuro.


2. Na semana passada, o Parlamento Europeu adoptou uma resolução com as prioridades que recomenda à Comissão para 2016, incluindo os refugiados e o governo do euro. A novidade deste documento está em que, após uma longa negociação, conseguiu o apoio dos quatro grupos parlamentares “europeus”: PPE, Socialistas, Liberais e Verdes. A intenção é levar o PE a reforçar a capacidade de iniciativa da Comissão e do seu presidente, compensando o poder cada vez maior do Conselho Europeu. A intenção é boa. Não vai ter grande efeito prático, porque já se foi longe de mais na perda de poder e de influência da Comissão no que é verdadeiramente importante. Apenas um exemplo: na negociação do terceiro resgate à Grécia, tudo ficou resolvido numa madrugada que manteve Merkel, Hollande, Tusk e Tsipras reunidos numa sala à parte, sem se darem ao trabalho de convidar Jean-Claude Juncker. Com os refugiados é um pouco a mesma coisa. Há meses que anda, em vão, a falar da necessidade de quotas e a sua proposta tem, neste caso, o apoio da Alemanha. A Comissão já não tem força para fazer o que lhe compete: encontrar um interesse comum.


3. A única forma de combater o restabelecimento de fronteiras é conseguir um entendimento sobre uma política de asilo comum, não só para enfrentar esta crise mas para poder controlar as que se seguirão enquanto se mantiver a instabilidade e a guerra no Mediterrâneo e no Médio Oriente ou na Ásia Central. Além disso, a Europa não precisa apenas de uniformizar as leis do asilo, modificando Dublin II. Precisa ainda mais de uma estratégia de longo prazo em matéria de imigração. Para combater a imigração ilegal é preciso que haja uma imigração legal. O problema é que não há, sendo que, na maioria dos países, apenas se mantém a reunificação familiar. Ora, é fácil de entender (há um manancial de estudos bem fundamentados a prová-lo) que a demografia é uma das maiores ameaças à Europa, se quer continuar a contar no mundo. Combater a fraca natalidade tem dado resultados muito escassos. Integrar imigrantes dará resultados muito mais depressa. É o que pensam os empresários alemães. Mas não é o que dizem os governos europeus, apenas porque as suas prioridades políticas se deixaram aprisionar pelas agendas xenófobas. A integração de gente de fora é a melhor saída para o crescimento económico e a sustentabilidade do Estado social. Os serviços públicos podem estar sob imensa pressão, mas os imigrantes (e refugiados) vêm para trabalhar porque querem uma oportunidade na vida, o que significa que vão contribuir para o financiamento do welfare. O outro argumento contra esta vaga de migrantes – os potenciais terroristas que podem entrar na Europa – também não faz grande sentido. Basta olhar para quem tem cometido atentados, por exemplo em França, para perceber que eles são todos franceses, dispondo dos respectivos passaportes europeus.

4. Na próxima semana, o mundo inteiro vai convergir para Nova Iorque, para participar na Assembleia Geral das Nações Unidas. Três figuras vão merecer a nossa melhor atenção. O Papa Francisco, que chega de Cuba e se encontra com Obama. Olhando em volta, ambos são o que nos resta para acreditar que as coisas podem correr um pouco melhor. Não interessa se fazem tudo bem, porque fazem o suficiente para acumular um imenso soft power mundial. A terceira personalidade chama-se Xi Jinping e será também recebida com honras de Estado pelo Presidente americano. Francisco foi o intermediário entre Obama e Raúl Castro. Xi tem nas mãos o destino do maior país do mundo, que está a atravessar um difícil período de transição. Obama precisa de criar uma boa relação com ele, sem abdicar da presença americana no Pacífico e da protecção dos seus aliados regionais. A decisão da Fed sobre as taxas de juro já foi, em boa medida, tomada levando em consideração o que se está a passar nas potências emergentes e, em primeiro lugar, na China, que ameaça o já fraco crescimento global. Obama precisa também de encontrar uma forma de negociar com Putin uma solução que pare a guerra na Síria. Haverá muitos encontros. E, se não houver mais nada, ouvir Francisco e ouvir Obama será, pelo menos, um consolo para esquecermos um pouco a nossa angústia. A Europa, como dizia Jean Monet, foi feita para acabar com as fronteiras. Reerguê-las é o pior dos indícios.

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