“De forma alguma devemos juntar jovens com problemas de delinquência”

O especialista canadiano Richard Tremblay defende que a prevenção da criminalidade deve começar na gravidez e explica os efeitos perversos do modelo de intervenção nos jovens com problemas de delinquência usado no mundo ocidental.

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Richard Tremblay Diogo Baptista

Aos 71 anos, Richard Tremblay é investigador na Escola de Saúde Pública na University College de Dublin, tendo-se jubilado de professor de psicologia na Universidade de Montreal, no Canadá. É director do Centro de Excelência para o Desenvolvimento da Primeira Infância e dirige o Grupo de Investigação sobre a Inadaptação Psicossocial na Infância, tendo dedicado a sua vida a estudar formas de prevenir a criminalidade e a delinquência juvenil. Esteve em Portugal, no início deste mês para participar numa conferência europeia de criminologia, que decorreu no Porto, onde falou com o PÚBLICO. Nesta entrevista defende que a prevenção da criminalidade deve começar na gravidez e explica os efeitos perversos do modelo de intervenção nos jovens com problemas de delinquência usado no mundo ocidental.

A sua formação base é da educação física. Como foi parar à psicologia e à criminologia?
O meu pai era jogador de futebol americano e eu não conhecia mais nada na vida. No fim da minha formação em educação física li um romance sobre um professor de educação física que trabalhava num hospital psiquiátrico. No último ano vi uma oferta para trabalhar num hospital psiquiátrico e candidatei-me. Quando comecei a trabalhar percebi que não tinha a formação necessária. Disse ao director do hospital que gostaria de fazer o trabalho, mas deveria regressar aos estudos. Acabei por fazer uma licenciatura em psicologia. E depois por trabalhar num hospital para doentes mentais perigosos.

Qual foi o impacto de trabalhar em hospitais psiquiátricos?
Gostei muito. Trabalhei com adultos que tinham problemas mentais e eram perigosos, alguns tinham matado pessoas. Eram todos humanos, humanos com quem era muito agradável trabalhar. Fazia actividades físicas com eles. Mas a universidade ofereceu-me um lugar e decidi fazer o doutoramento em Inglaterra. Comecei a interessar-me no porquê de os jovens se tornarem criminosos. E quando regressei decidi lançar um estudo sobre o desenvolvimento das crianças, desde muito cedo até à idade adulta. Primeiro comecei com estudos em adultos, depois em adolescentes, depois em crianças em idade de amamentação e agora em grávidas. Recuei até à origem para perceber como podemos prevenir os crimes.

Não podemos dizer que uma pessoa nasce criminosa, mas que há quem nasça com maior tendência para cometer crimes?
Temos todos a capacidade de sobreviver na selva. Faz parte da evolução da humanidade. Todos os animais têm a necessidade de serem capazes de agredir, seja para comer, seja para se defenderem. Aprendemos a não agredir, mas há crianças que, por motivos genéticos e também ambientais, não aprendem tão bem. Com o avançar da idade isso diminui, mas são sempre mais violentos do que a média. A causa parecem ser problemas durante a gravidez e depois do nascimento, que fazem com que o desenvolvimento do cérebro não se faça tão bem. A sua capacidade de controlo é menor.

Mas é possível que crianças com predisposição genética para a violência se transformem em adultos normais?
Sim. A maioria das crianças, mesmo as mais agressivas, aprendem a controlar-se. Os jovens com muito sucesso na política ou no desporto são os que têm a capacidade de se bater tanto no plano intelectual como no desportivo, ou ao nível musical. Querem absolutamente ganhar. Os genes da agressão também são importantes na socialização. Se vivemos numa sociedade em que a agressão física é importante, como na Idade Média, vamos encorajar a agressão. Mas ao mesmo tempo - como para nos tornarmos um bom boxeur - também nos devemos controlar. Alguém que agride de forma incontrolável não conseguirá ter sucesso. Deve continuar a conseguir agredir e ao mesmo tempo controlar-se. Mas há indivíduos que não o conseguem, seja por questões genéticas, seja por questões ambientais. O que descobrimos nestes últimos anos são os chamados efeitos epigenéticos: o efeito do ambiente nos genes. Há genes destinados a ajudar-nos a controlarmo-nos que existem, mas não estão activos.

Há alguma forma de activar estes genes que estão inactivos? 
Há medicamentos que ajudam a corrigir estes efeitos. É provável que venhamos a desenvolver este tipo de medicação. Estes genes são activados e desactivados constantemente, por exemplo, quando tomamos álcool ou quando comemos. Já há alguns remédios que ajudam a controlar a agressividade. Por exemplo, damos medicamentos muito cedo a crianças que têm problemas de hiperactividade. Mas se apoiarmos as mulheres durante a gravidez não temos necessidade de medicamentos mais tarde. Se a grávida não fumar, não beber álcool, se andar menos stressada, o cérebro do bebé vai-se desenvolver com mais normalidade. Faz mais sentido intervir mais cedo para evitar os medicamentos, que são sempre uma muleta. Devemos olhar para os problemas – não só a criminalidade mas também para doenças físicas como os problemas cardiovasculares ou o cancro – de uma forma global e perceber a importância da gravidez e da pequena infância, porque é assim a nossa organização biológica. Se as coisas vão mal ao início é como construir um edifício em maus alicerces, ele vai afundar. E vai ter problemas sérios no futuro. É preciso investir mais dinheiro na primeira infância e, se o dinheiro faltar, é preciso tirá-lo aos estudos focados nos adultos. É uma questão fundamental da prevenção.

Que intervenção deve ser feita durante a gravidez?
São intervenções relativamente simples. Formaram-se enfermeiras para visitar, a cada duas semanas, as mulheres nas suas casas para ajudar um pouco em tudo: na alimentação, ao nível de eventuais problemas conjugais, a regressar à escola se tiverem uma escolaridade reduzida, a aconselhar em problemas de saúde. E mantém-se esta intervenção até as crianças terem pelo menos dois anos. Especialmente agora que sabemos que os principais problemas de agressão dão-se até aos três, quatro anos. É um apoio constante para estas mulheres e para os pais, quando há pai.

Quais são os resultados?
Mostramos que diminuíram muito os comportamentos abusivos dos pais - estas crianças são agora adultos - relativamente aos seus filhos. Na adolescência estes miúdos apresentam menos problemas de delinquência, mais sucesso escolar. Os últimos resultados mostram uma coisa curiosa: os efeitos são mais notórios nos filhos destas crianças do que nelas enquanto adolescentes. Portanto, a segunda geração vai sentir ainda mais os efeitos benéficos desta intervenção. Por isso defendo que face aos recursos limitados faz mais sentido dirigi-los para as grávidas e para os seus bebés, do que concentrá-las no pai com problemas criminais ou no adolescente delinquente. Essas intervenções já são muito tardias e não produzem nenhuma consequência biológica na reprodução intergeracional. 

Também estudou a delinquência juvenil. Qual é a intervenção mais eficaz para estes jovens? Ou defende que não vale a pena fazer nada?
Neste caso a intervenção não é feita por enfermeiros, mas por psicólogos ou assistentes sociais que vão a casa destes jovens a cada duas semanas, durante dois anos. Este género de intervenção também tem efeitos benéficos: os rapazes têm mais sucesso na escola, há menos jovens a abandonar a escola no fim do secundário e a tornar-se criminosos. Quanto mais cedo for feita melhores efeitos terá. É preferível intervir no início da escola primária do que na adolescência. Mostrámos que, se juntamos os adolescentes delinquentes para fazer uma intervenção, os resultados são negativos.

Mas esse é o nosso modelo. Os jovens com problemas mais graves de delinquência são colocados em centros educativos
É o modelo em todos os países, provavelmente por motivos económicos. Pegamos nos piores e juntamo-los em centros de detenção, com outros adolescentes. E os adolescentes não imitam os adultos, imitam os outros pares. Criamos laços de amizade entre os piores, o que não resolve o problema. No século XIX estes jovens eram misturados com os adultos, o que foi muito criticado, tendo-se acabado por separar os adolescentes. Esquecemo-nos que são mais influenciados por outros adolescentes do que pelos adultos. Seria preferível mantê-los no seu meio e dar-lhes muitos apoios. Mesmo para os jovens de 16 ou 17 anos demonstrámos que não os devemos agrupar, mas pegar em um ou dois e integrá-los com outros jovens sem problemas, que possam servir de modelo positivo. De quem possam tornar-se amigos. Isto cria uma rede de apoio entre adolescentes. De forma alguma devemos juntar jovens com problemas de delinquência.

Conhece algum país com um modelo diferente?
Não. Cada vez mais fazem-se intervenções no meio próprio dos adolescentes nos casos em que os problemas não são muito graves. Nos Estados Unidos foi feita uma experiência em que os jovens dormiam em casa, mas no fim da escola eram agrupados para desenvolverem actividades. O resultado foi desastroso. Apesar de se reunirem só à noite deu maus resultados.

Que sinais de agressividade até aos três/quatro anos de idade devem colocar os pais alerta?
A maioria dos bebés não tem qualquer problema. Bate, morde… aliás, todos os bebés! É importante que os pais saibam que é normal. Nas creches, por exemplo, as educadoras observam e são capazes de comparar os níveis de agressividade. Normalmente sabemos quem será um caso problemático olhando para a família. Se os pais já tiveram problemas de controlo. É preciso olhar para o conjunto. São os profissionais que trabalham com as crianças os melhor colocados para detectarem problemas. Primeiro ainda estão os obstetras, que acompanham o início de uma gravidez. Infelizmente não são formados para isso, mas devem aprender para poderem despistar os casos, de forma a encaminhar as famílias para um serviço de apoio. Se não o fizermos cedo, os problemas vão aumentando, aumentando e as crianças chegam aos quatro/cinco anos e não é fácil corrigi-las. A mãe entretanto teve mais três filhos, o pai já não está em casa…

Associa directamente o crime aos problemas sociais, como a pobreza, as drogas, o álcool?
Todos os estudos que fizemos demonstram que as crianças que estão numa trajectória de agressão crónica vêm de famílias destas. Se for à prisão encontrará muitas crianças destas. São problemas que passam de geração em geração.

Em 2005, participou num estudo muito polémico em França. O que estava em causa?
O objectivo era fazer um relatório sobre o estado do conhecimento relativamente ao comportamento juvenil. Fizemos recomendações no sentido de intervir cedo nos casos de risco. Como a França tem um sistema em que as crianças começam a escola aos três anos, propusemos que nessa altura fosse feita uma despistagem e nos casos em que fossem detectadas dificuldades fosse dado o apoio adequado. Sarkozy era ministro da Administração Interna e, por isso, responsável por esta área. Tinha criado um comité independente para perceber como se podiam prevenir os problemas de delinquência. Quando a esquerda e particularmente os psicanalistas viram o nosso relatório reagiram.

Qual era o problema? 
Apresentavam a questão da seguinte maneira: ‘Eles vão-se servir da escola para identificar delinquentes aos três anos’. Havia a ideia de que, se dizíamos que havia o risco de surgirem problemas de delinquência mais tarde, então já estávamos a tratar as crianças como delinquentes. Estaríamos a estigmatizá-las.

Qual será o futuro dos estudos nesta área?
É preciso experimentar. Fazer ensaios clínicos de forma sistemática para perceber o que funciona e o que não funciona. Os profissionais que estão no terreno, como os assistentes sociais, não são formados para a importância da experimentação. São convencidos que sabem exactamente o que é preciso fazer. E foram formados por nós. E nós sabemos que a formação que receberam é apenas o início. Devemos formar profissionais mais modestos. O primeiro problema que temos quando queremos lançar um estudo é que os profissionais que estão no terreno não querem participar. E se não participam, não temos meios para as fazer.  
 

Corrigida às 17h, tendo-se substituído na entrada a referência "especialista britânico" por "especialista canadiano".

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