Magna Carta: Pouco interessa o que aconteceu em 1215

A Magna Carta não é o que aconteceu há 800 anos. O que se comemora é aquilo que os séculos fizeram dela, um mito poderoso na longa história da limitação do poder dos reis, da democracia parlamentar e da afirmação das liberdades individuais.

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Uma cópia da Magna Carta datada de 1297 é exposta antes de um leilão Chip East/Reuters

O mundo — em especial na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos — comemorou este ano o oitavo centenário da lendária Magna Carta. Ontem foi o dia nobre. Nada designaria na época tal notoriedade para um documento em que os vindouros descobrirão uma das inspirações da democracia moderna. A este respeito, observa o medievalista britânico David Carpenter: “Em 1215 tanto [o rei] João como os seus inimigos teriam ficado espantados se soubessem que a Carta sobreviveria e seria celebrada 800 anos depois.”

De onde vem a Magna Carta? No dia 15 de Junho de 1215, os barões ingleses e os dignitários do clero impuseram ao rei João sem Terra (John Lackland) uma espécie de tratado que será mais tarde designado por Magna Carta. É um documento de 63 artigos, redigido em latim, negociado e assinado na pradaria de Runnymede, junto ao Tamisa, perto de Windsor. Foi originalmente designada como Carta de Runnymede, depois como Grande Carta e, no século XVII, será consagrado o nome de Magna Carta.

João sem Terra deve o seu cognome ao facto de não ter sido dotado pelo pai de terras ao nascer. Subiu ao trono após a morte de três irmãos. Foi um rei azarento e de má fama: violento e sem escrúpulos. Depressa entrou em conflito com bispos e barões. Opôs-se à eleição do novo arcebispo de Cantuária, Stephen Langton, que tradicionalmente ocupava o lugar de ministro principal. Recusou a arbitragem do Papa Inocêncio III e apoderou-se de terras do arcebispado. Inocêncio III paralisou a vida religiosa no país: proibição dos sinos, ofícios religiosos e sacramentos. Depois excomungou o rei.

Segundo acto: João alia-se ao imperador da Alemanha e ao conde de Flandres contra Filipe Augusto, rei de França. Em 1214 é vencido na batalha de Bouvines, perde  a maioria dos domínios que tinha em França, designadamente o ducado da Normandia, de onde partira Guilherme, o Conquistador, para se apoderar da Inglaterra. João regressa derrotado e com a Coroa à beira da bancarrota. Furiosos com o comportamento do rei, com os seus abusos e com novas subidas de impostos, que consideram ilegitimos, para financiar as expedições militares, os barões ingleses revoltam-se. Em Maio de 1215, sublevam-se os habitantes de Londres, que se unem aos nobres. A João sem Terra resta submeter-se. Foi o que fez em Runnymede.

Uma carta de direitos
Sublinham os historiadores que o texto da Carta não é radicalmente inovador. O arcebispo Langton apresentou, aliás, a João a “Carta das liberdades”, assinada por Henrique I (filho de Guilherme) após a sua coroação em 1100, em que garantia os direitos da nobreza e prometia “abolir todos os maus costumes pelos quais o Reino de Inglaterra era injustamente oprimido.”

O texto de 1215 garante os privilégios do clero e regulamenta os direitos de sucessão e herança da nobreza, concede aos negociantes a liberdade de circulação e confirma os privilégios das cidades, dos portos e de Londres em particular. Nenhum imposto pode ser decretado sem o consentimento do “conselho comum do reino”, composto pelos dignitários do clero e principais chefes da nobreza — uma disposição que, séculos depois, terá explosiva ressonância na América.

“Essencialmente, o que aconteceu em 1215 reside no facto de o reino se ter revoltado e dito ao rei que tinha de obedecer às suas próprias regras”, escreve Carpenter. Ou seja: o rei não está acima da lei. E se o monarca viola a lei e as normas do reino, se se recusa a fazer justiça, os súbditos têm o direito de se insurgir “até que os abusos tenham sido reparados”.

A Magna Carta não sai do quadro da ordem feudal e, segundo alguns historiadores, até a consolida. Muito menos significa o esboço de um projecto constitucional. Servia os interesses de uma pequeníssima minoria de poderosos. Mas o conjunto das suas disposições vai poder ser usado contra o arbítrio real e, mais tarde, contra a “tirania” em geral.

Uma das mais simbólicas passagens consagra a proibição das detenções arbitrárias. “O corpo de um homem livre não será detido, ou preso ou desapossado dos seus bens, declarado fora-de-lei, exilado ou executado, excepto por julgamento dos seus pares ou pelas leis do país.” Esta disposição antecipa a instituição da figura do habeas corpus, em 1679.

No fim da negociação, João terá perguntado aos inimigos: “Barões, porque é que com todas estas injustas extorsões não pedis o meu reino?” Morreu em 1216.

Redigida em latim, negociada entre o rei e barões que falavam francês, não se destinava ao povo, que era analfabeto e falava inglês. Mas os bispos impuseram uma disposição de largo alcance. O rei pretendia que o tratado ficasse em sigilo. Ao contrário, o clero distribuiu cópias por todo o país. Traduzido em francês, e no fim do século em inglês, torna-se um texto público, que pode ser invocado. Mas não teve grande relevância nos tempos que se seguiram.

Oitocentos anos
Com o tempo, a Carta foi revista várias vezes e depois praticamente esquecida. Ressuscita no século XVII durante a luta do Parlamento contra o absolutismo de Carlos I. O jurista Edward Coke, um dos líderes da revolta parlamentar, transforma a Magna Carta numa das principais armas contra a monarquia. Será a base da Petição de Direitos que Carlos I será forçado assinar. Decapitado o rei, a Carta passa de moda na Inglaterra.

Encontrará uma segunda vida nas colónias americanas como instrumento de luta contra a “tirania” e os abusos da Coroa e do Parlamento britânicos. Será reinterpretada e transformada em símbolo do império da lei. Tornar-se-á no texto inspirador da independência e do modelo americano de democracia. “O mito da Magna Carta foi essencialmente gravado em pedra nas colónias”, resume a historiadora americana Jill Lepore.

Os colonos começam a citá-la no século XVII. Benjamin Franklin invoca-a como argumento contra o pagamento do imposto do selo imposto por Londres. Em 1775, o Massachusetts adopta um novo selo mostrando um homem com uma espada numa mão e a Magna Carta na outra. O primeiro Congresso Continental de 1774 justifica o direito à rebelião através da Magna Carta.

Divergem a história do documento e o seu significado moderno. A Magna Carta é reinventada e passa a ser o texto fundador das liberdades individuais, do direito constitucional moderno, do governo representativo, da separação dos poderes, da limitação das prerrogativas do Estado. Nesta óptica, será um erro olhar a Magna Carta no contexto da época em que foi redigida, pois o que conta é o papel revolucionário que veio a ter.

No século XIX, o historiador britânico F.W. Maitland qualificou-a como “texto sagrado”. Escreve hoje o jurista norte-americano Noah Feldman: “Nenhum outro documento na História universal foi capaz de funcionar tantas vezes e em tantos lugares como epítome de um ideal.”

É o fascinante desfecho de uma feroz negociação política e de um documento redigido há 800 anos.

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