Poucos casos de maus tratos a menores chegam à Medicina Legal

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A violência dentro da família é a que tem piores consequências para a criança, porque resultam em perda de confiança em casa Adriano Miranda/PÚBLICO

"Não temos ainda conhecimento da realidade nacional", sublinha o presidente do IML, Duarte Nuno Vieira. Os gabinetes médico-legais ainda estão em fase de instalação. Até ao final do ano deverão estar a funcionar 24 dos 31 previstos, salienta. E os 22 que já existem não têm todos especialistas em medicina legal, frisa.

Falta de meios à parte, os pedidos de perícia que chegam às três delegações revelam uma espécie de inversão da realidade: diversos estudos mostram que a negligência e os maus tratos são mais frequentes, mas no IML o abuso sexual surge à cabeça. O caso da delegação de Coimbra é o mais flagrante: a estatística do ano passado referente a menores faz-se com 127 casos de abuso sexual e 13 de maus tratos.

O abuso sexual ganhou muita visibilidade nos anos mais recentes - a que o processo Casa Pia não é alheio, apontam as diversas fontes contactadas pelo PÚBLICO. As dénuncias vão em crescendo. Só no primeiro semestre deste ano, a Polícia Judiciária abriu 667 processos de abuso sexual de menores (mais 138 do que em 2003).

Vigora, explica Maria José Gamboa, do Projecto de Apoio à Família e à Criança, do Porto, a ideia de que "bater nos filhos é uma prática educativa punitiva". O abuso sexual é "outro universo", não só pelo choque que provoca, como "pela questão do interdito sexual".

Quem mais maltrata são os pais (o estudo "As famílias e os maus tratos às crianças em Portugal", publicado em 2001 pela Presidência da República, mostrava que em 65 por cento das situações analisadas, os maus tratos eram infligidos pelos progenitores). A violência tende a repetir-se então no anonimato da família. Muitas vezes, com a conivência de familiares e de vizinhos.

"O pai e a mãe são as pessoas que estão mais próximas das crianças, o reverso da medalha é que são eles que lidam com o problema da criação dos filhos num país onde as mulheres se confrontam com uma jornada longa e pesada de trabalho", refere Ana Nunes de Almeida, socióloga do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, lembrando que "a grande maioria dos maus tratos acontece em famílias normais, não pobres".

Romper o silêncio é difícil. Não só porque quem bate é alguém de quem se gosta."Uma criança que vive numa situação de violência frequente, banaliza, muitas vezes, os próprios actos de violência", diz Maria José Gamboa. "Isto não quer dizer que não sofre, quer dizer que tem uma resistência diferente", esclarece. Os meninos inseridos em famílias onde a violência é espaçada, "mais facilmente rejeitam esta forma de trato e falam", continua. E as escolas, afirma, são zonas privilegiadas para este género de denúncia.

A presidente do IML do Porto, Teresa Magalhães, não tem dúvidas quanto a uma evolução positiva, mas frisa que os profissionais tendem a não denunciar este género de crime (ver entrevista). "Mesmo as comissões de protecção de crianças e jovens", indica. E exemplifica: "As comissões foram instaladas no Porto há pouco e já começaram a solicitar mais exames, mas sabemos que nem todos os casos vêm cá parar. Só as situações mais graves, aquelas em que há marcas mais objectivas".

Os registos do IML mostram um leque variado de marcas físicas de violência infligida a menores: equimoses e ou escoriações com diferentes colorações (provocadas por pontapés e murros), mas também lesões feitas com objectos contundentes ou com cintos. Há ainda lesões graves no cérebro de bebés provocadas por abanões. E queimaduras, intoxicações, perdas de cabelo traumáticas, lesões de pressão dos membros com fracturas, fracturas por arremesso das crianças...

Teresa Magalhães lembra ainda que os maus tratos dentro da família são aqueles que piores consequências têm no menor, "dado que se verifica uma quebra profunda de confiança e uma perda de segurança em casa, o que constitui uma ameaça profunda ao seu desenvolvimento".

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