Um engenheiro de pontes e não de muros

A política internacional sempre foi a guerra com intervalos de paz. Mas há na actualidade vários elementos novos que tornam cada vez mais difícil gerir a ordem.

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Reuters/ABDALRHMAN ISMAIL

O Papa Francisco tem referido várias vezes que o mundo vive hoje uma 3.ª Guerra Mundial, “combatida por partes, com crimes, massacres e destruições”, acrescentando que “a guerra é loucura”.

De facto, o simples exercício de olhar para um mapa leva-nos a concluir que o mundo parece louco. Estamos a assistir um pouco por todo o globo ao alastrar do horror, da violência, do conflito e do caos, num grande arco que passa por várias regiões — da Europa de Leste ao Médio Oriente, da Ásia Central à África do Norte, do Sahel ao Corno de África — e atinge muitos países — a Síria, o Iraque, a Líbia, o Afeganistão, o Iémen, a Ucrânia, para referir apenas alguns exemplos bem conhecidos. A par disto tudo, vemos uma vaga maciça de refugiados que se estende a cada vez mais locais.

A política internacional sempre foi a guerra com intervalos de paz. Todavia, há na actualidade vários elementos novos e de carácter estrutural que tornam cada vez mais difícil gerir a ordem mundial e manter a paz, sendo de destacar a contestação generalizada dos poucos princípios que gozavam de aceitação geral, a ausência de uma potência e um modelo ordenador e a existência de uma diversidade civilizacional sem precedentes. Tudo isto num momento em que vivemos pela primeira vez na história numa ordem verdadeiramente global mas, mesmo tempo, crescentemente regionalizada.

As três tarefas de Guterres

A primeira tarefa do próximo secretário-geral das Nações Unidas consiste em contribuir para resolver, ou para ser mais realista atenuar, estes problemas de fundo, pois disso depende a solução dos vários problemas concretos que tem de enfrentar. Em primeiro lugar, ele pode ajudar os Estados — a começar pelas potências mais relevantes — a chegar novamente a acordo sobre um conjunto de princípios mínimos, como a soberania dos Estados, a inviolabilidade das fronteiras, a não interferência nos assuntos internos dos países e o respeito pelos compromissos internacionais.

Em segundo lugar, ele pode ser o anfitrião de um novo modelo ordenador que reflicta as mudanças de poder no sistema internacional, ou seja, de um concerto alargado das potências mundiais e regionais, incluindo aquelas que têm sido excluídas até agora, tais como a Alemanha, a Índia, o Brasil ou mesmo a África do Sul, que coexista com o actual Conselho de Segurança da ONU, cuja reforma parece impossível.

Em terceiro lugar, ele pode ser o promotor de um diálogo entre civilizações que permita um melhor conhecimento de países e sociedades que parecem olhar umas para as outras sobretudo através de preconceitos. É dentro deste quadro mais vasto que António Guterres tem de definir uma grande orientação política que molde a sua actuação nas graves crises que o mundo enfrenta hoje.

Pela sua própria experiência, pelo conhecimento e sensibilidade que tem em relação ao assunto, pelo seu valor simbólico e pela própria natureza da ONU, a sua primeira e grande bandeira deve ser a crise dos refugiados. Se tivéssemos de escolher um só assunto que represente a falência moral colectiva ele seria a vaga maciça de pessoas que nos mares, nas planícies e nas montanhas fogem à guerra e ao mais fanático radicalismo religioso, não poupando crianças, jovens ou mulheres, muitos deles mortos, violados ou torturados no percurso à procura não de uma vida melhor mas da pura sobrevivência. Pelo seu poder de definir a agenda (agenda-setting), o novo secretário-geral pode fazer deste drama uma prioridade ao nível internacional, transformando aquilo que começou por ser um problema de italianos e gregos, e agora da Europa do Centro e do Leste, numa obrigação da chamada comunidade internacional. Seja no apoio aos que já se encontram em campos de refugiados, seja no contributo para a implementação de políticas de acolhimento, seja na busca de soluções nos locais de origem — Líbia, Síria, etc. —, as Nações Unidas são muito provavelmente a única organização com a capacidade de liderar uma resposta colectiva ao problema, além de que quer a organização, quer António Guterres têm aqui uma vasta experiência.

O conflito da Síria deve ser outra prioridade. Claro está que uma solução para o problema sírio não é fácil e passa essencialmente pelos Estados envolvidos, muito em particular os EUA, a Rússia, o Irão e a Turquia, sem esquecer algumas monarquias do Golfo. Porém, o secretário-geral pode colocar a questão no centro da agenda internacional, por exemplo pelo simples facto de aproveitar as cerimónias públicas e os seus discursos para falar da necessidade de pôr fim à guerra da Síria, o que não foi feito pelo seu antecessor.

Logo ali ao lado está outro dos grandes problemas internacionais: o Iraque. Apesar de existir formalmente, o Estado iraquiano foi, na prática, destruído, estando hoje retalhado entre a zona xiita, a sunita e a curda, sendo que o governo de Bagdad não tem a capacidade de mandar numa boa parte do território e é incapaz de travar a violência entre xiitas e sunitas, bem como o exército islâmico que ocupa partes do país. Uma vez mais, a solução deste problema passa pelas potências regionais e pelos Estados Unidos, sem esquecer o papel que pode ser desempenhado pela Rússia, mas a experiência e a capacidade revelada pela ONU ao nível da “construção de Estado” (state building) podem ser fundamentais, uma vez que a principal tarefa no país consiste justamente em reconstruir o Estado iraquiano.

Importa sublinhar que quer o caso da Síria, quer o do Iraque, são fundamentais para restituir os equilíbrios de poder no Médio Oriente, cuja destruição levou à emergência de um grande arco do vazio e da instabilidade que não só está a ser ocupado por grupos radicais islâmicos, como pode transformar os conflitos civis numa guerra entre potências regionais no Médio Oriente. Acresce que este arco com epicentro no Médio Oriente tem vindo a intersectar-se com outros grandes arcos semelhantes: um ao longo da Ásia Central; outro que começa do Norte de África e se estende por todo o muito vasto Sahel.

Na Ásia Central, o problema mais imediato é o do Afeganistão, um país fragmentado entre diversos grupos étnicos que voltarão à sua prática tradicional de se matarem uns aos outros depois da saída total das forças internacionais. Embora não pareça nada fácil face ao que é o país e à sua história, não se vê outra alternativa melhor à tentativa de “construção de Estado” no território afegão, e uma vez mais as Nações Unidas são quem está melhor preparado para desempenhar esta tarefa.

No Norte de África, António Guterres deparar-se-á desde logo com a Líbia, dividida ao meio entre a Tripolândia e a Cirenaica e partilhada por um conjunto de tribos — Sa´adi, Qadhadhfa, Maghraha e Warfalla, sem esquecer a população berbere na região de Jabal Nafusa — que, no mínimo, estão em estado de pré-guerra civil. Para agravar, as costas líbias tornaram-se um muito produtivo negócio de comércio de seres humanos, partindo daí uma parte das vagas de refugiados, e um novo santuário para grupos radicais islâmicos. A tarefa mais imediata aqui passa por conseguir criar, na prática, um governo unificado que possa com ajuda económica — e eventualmente militar — ser o interlocutor que não tem existido para travar a violência étnica, combater o crime organizado responsável por parte da crise dos refugiados e inverter o crescimento do radicalismo islâmico.

Importa destacar que até agora países fundamentais da região como a Argélia e Marrocos têm conseguido ficar de fora do arco do vazio e da instabilidade, mas há receios bem fundados sobre o que pode suceder na Argélia no pós-Bouteflika.

Certo é que a mesma sorte não tiveram os países localizados na longa linha do Sahel e do Corno de África, tais como o Mali, a Nigéria, o Sudão, a Eritreia, a Etiópia e a Somália. Seja directamente, seja por contágio, estes Estados têm assistido a um aumento da violência perpetuada por grupos como o Boko Haram, o Al-Shabaad e a Al-Qaeda do Magrebe Islâmico, o que, entre outros desenvolvimentos, coloca em causa a segurança do Atlântico Sul e de uma parte do Oceano Índico.

Finalmente, para referir apenas os exemplos mais evidentes, António Guterres terá de lidar com o complicado caso da Ucrânia, onde chocam o interesse de atrair a Rússia para a ordem internacional e, ao mesmo tempo, a sobrevivência dessa mesma ordem. Por um lado, não há solução para vários dos grandes problemas mundiais sem a Rússia — a proliferação nuclear, a estabilidade do Médio Oriente da Ásia Central e mesmo de parte da Europa de Leste —, mas, por outro lado, o reconhecimento da anexação da Crimeia pela força militar destrói um dos pilares fundamentais da ordem do pós-guerra fria.

Este mundo “louco”, que vive acossado e se volta a esconder atrás de muros, é o que está à espera de António Guterres. Todavia, é reconfortante saber que à frente das Nações Unidas estará um homem que conhece esse mundo e que, como comprova a sua própria longa experiência, será um engenheiro de pontes e não de muros.

Universidade Nova e IPRI-UNL

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