Regime sírio lamenta “insolência” dos rebeldes no arranque da cimeira russa

“Tudo mudou desde Alepo. A equação é outra”, resume um diplomata. Talvez por isso possa sair de Astana um princípio de paz, ainda que podre.

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Mohammad Alloush (à esquerda) é o líder da delegação rebeldes Igor Kovalenko/EPA

Quando se anunciam conversações sobre a Síria nunca se sabe se vão mesmo acontecer, mesmo que os interlocutores já tenham apanhado o avião para o destino. A boa notícia desta segunda-feira é que a cimeira de Astana começou mesmo. Há mais, com as duas partes em guerra a anunciarem que pode sair do Cazaquistão um documento de trabalho conjunto e os rebeldes a notar "uma compreensão real da parte dos russos", disse aos jornalistas o porta-voz da oposição, Yahya al-Aridi.

Com a Rússia a ocupar o papel de potência mundial no Médio Oriente, o cenário mudou de cidade, de Genebra para a capital cazaque, e a oposição a Bashar al-Assad passou a estar representada por porta-vozes dos rebeldes armados e não dos grupos de opositores políticos. Aliás, de fora estão alguns dos mais importantes países com interesses próprios na Síria, e que apoiam os maiores grupos da oposição, como a Arábia Saudita e o Qatar, enquanto os Estados Unidos participam como observadores, representados pelo embaixador em Astana, George Krol.

Damasco deixou em casa o seu ministro da Informação, Omran al-Zoubi, que costumava assinalar as idas a Genebra (onde decorreram várias rondas de debate promovidas pela ONU) em tom de bazófia, indicando sempre que não estava ali para discutir o que vinha na agenda – a transição de poder, nomeadamente. Desta vez, no programa está apenas o cessar-fogo (em vigor, mas a ser violado diariamente) e a distribuição de ajuda. E foi o representante sírio, o embaixador nas Nações Unidas, Bashar Jaafari, a queixa-se do tom da oposição, que descreve como “insolente” e “provocador”.

Mohammad Alloush, chefe do comité político do grupo Jaish al-Islam, iniciou a conferência acusando o regime e os seus aliados russos, iranianos e libaneses de violarem a trégua, afirmando que a escolha preferencial dos rebeldes vai para uma solução política, mas que essa “não é a única opção”.  Alloush não é um estreante nestas andanças – nas rondas de Genebra era ele que falava em nome do Alto Comité de Negociações da oposição, grupo que não foi convidado – e percebe-se que tenha arrancado ao ataque. Afinal, estas são negociações promovidas pela Rússia, cujos militares asseguram actualmente a protecção de Alepo e cuja aviação bombardeia todos os dias alvos na Síria.

Afinal, estas são as negociações pós-queda de Alepo, a maior cidade síria, reconquistada na totalidade por Assad em Dezembro, depois de semanas de raides aéreos de uma violência inusitada. “Tudo mudou desde Alepo. A equação é outra”, resume um diplomata ocidental ouvido pela veterana correspondente internacional da BC, Lyse Doucet. 

Mudou muito, isso é certo. E as mudanças vêem-se em que está. A cimeira é organizada pela Rússia em colaboração com o Irão e a Turquia, o país que mais cedo exigiu a queda de Assad e que agora admite que esse objectivo “deixou de ser realista”. Com esta afirmação, Ancara conseguiu que os russos deixassem de fora do debate as milícias curdas, a força militar mais poderosa na oposição, fundamental no combate aos jihadistas do Daesh. Para além disso, os russos já gastaram demasiado dinheiro na Síria e querem genuinamente assegurar uma trégua; segundo a oposição, Teerão e Damasco nem por isso.

Prevê-se que Astana se prolongue por alguns dias, antes de outra ronda em Genebra, marcada pelo enviado da ONU, Staffan de Mistura, para 8 de Fevereiro. Se daqui saírem progressos militares e de desbloqueio logístico para a distribuição de ajuda, pode ser que em Genebra haja evoluções políticas.

Agora que a oposição considerada moderada (o autoproclamado Estado Islâmico e a Jabah Fateh al-Sham não foram convidados; ao Ahrar al-Sham recusou estar) está reduzida a uns poucos enclaves, é provável que uma parte possa ser convencida a aceitar Assad num primeiro período de transição. Os outros rebeldes, assim como muitos sírios que perderam tanto às mãos do ditador, bem podem dizer "não". Dificilmente conseguirão grandes apoios nessa recusa.

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