Kerry pede à Rússia para demonstrar “compaixão” em Alepo

“Que paz é que eles querem? A paz dos cemitérios?”, perguntou o ministro dos Negócios Estrangeiros francês referindo-se a Moscovo e Damasco. Da cidade síria chegam relatos de "bombardeamentos de uma intensidade inaudita".

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John Kerry e Jean-Marc Ayrault no encontro de Paris Benoit Tessier/Reuters

Se a impotência dos diplomatas dos principais países europeus e dos Estados Unidos face à situação da Síria não estivesse ainda clara, os encontros deste sábado em Paris e Genebra, anunciados como uma “tentativa para salvar Alepo da destruição total”, foram bastante esclarecedores. “Acredito que pode haver um caminho, mas depende de escolhas grandes, magnânimas da Rússia… e da insistência da Rússia com o regime Assad”, disse John Kerry aos jornalistas em França.

“As nossas equipas estão a reunir-se em Genebra para detalhar os pormenores de uma solução possível para salvar vidas”, afirmou ainda o secretário de Estado de Barack Obama. “A Rússia e [Bashar al] Assad estão numa posição dominante e podiam aproveitar este momento para demonstrar alguma compaixão.”

O momento é Alepo, onde as forças do regime de Assad, apoiadas pela aviação russa, por peritos russos e milícias árabes xiitas estrangeiras, estão prestes a recuperar a totalidade de uma cidade dividida ao meio desde 2012. As Nações Unidas temem por “centenas de homens” que desapareceram nos últimos dias, os mortos não param de se acumular – literalmente. Um correspondente da AFP no Leste de Alepo escreve que “civis em fuga viram corpos por recolher nas ruas de um bairro porque a intensidade dos bombardeamentos tornou demasiado perigoso recuperá-los”.

"Os bombardeamentos são de uma intensidade inaudita", diz Ibrahim Abu al-Leith, porta-voz dos Capacetes Brancos, uma organização de socorristas que opera nas áreas da oposição. "As ruas estão cheias de gente debaixo dos escombros. Morrem por não conseguirem sair de lá." 

Mais de 800 pessoas foram mortas e 3000 a 3500 ficaram feridas em Alepo entre o início da actual ofensiva de Damasco, há três semanas e meia, e quinta-feira, diz Brita Hassam, presidente do conselho local da cidade, que esta semana esteve em Genebra para se encontrar com o enviado da ONU para a Síria, Staffan de Mistura.

Segundo as agências de notícias russas, que citam o Ministério da Defesa, o Governo sírio “controla já 93% de Alepo”, a maior cidade do país, capital do Norte e antigo centro comercial e cultural da Síria. 

Os diferentes grupos armados da oposição a Damasco estão cada mais confinados; e com eles, mais de 100 mil civis (números da ONU) que não arriscam fugir para as zonas controladas por Assad, com medo de detenções ou outras represálias. “Os combatentes não acreditam que se saírem para tentar salvar Alepo isso signifique mesmo salvar Alepo e temem não ficar em liberdade até se conseguirem deslocar para onde não sejam imediatamente atacados”, disse Kerry, explicando que da Suíça terão de sair algumas garantias.

Em Genebra estão delegações “técnicas” dos EUA e da Rússia. Em Paris, este sábado de manhã, estiveram enviados dos EUA, Reino Unido, Turquia, Arábia Saudita, entre outros países que se opõem a Assad. “Que paz é que eles querem? A paz dos cemitérios?”, perguntou no encontro o ministro dos Negócios Estrangeiros francês, Jean-Marc Ayrault, referindo-se a Moscovo e Damasco.

Já ninguém acredita numa Síria inteira. O Daesh continua entrincheirado em Raqqa, no Noroeste, cidade que os EUA se preparam para ajudar as milícias curdas a tomar (anunciaram o envio de mais 200 militares para juntar aos 300 membros dos serviços secretos que já se encontram na região), e acaba de reentrar em Palmira. Os curdos continuam a controlar vastas zonas do Norte (parte da província de Alepo e daí para Leste, ao longo da fronteira com a Turquia e até ao Iraque, menos uma faixa de território), enquanto os turcos e grupos de rebeldes árabes sírios apoiados por Ancara combatem tanto os curdos como o Daesh.

A queda de Alepo para as mãos do regime não representa o fim do conflito armado, numa guerra que começou com a repressão de Assad contra manifestantes pró-democracia, em 2011. Mas significa que o Presidente sírio terá sob seu controlo a Síria que considera "útil" - as regiões ocidentais do país, de Alepo a Damasco, passando por Latakia, a cidade costeira perto da qual os russos têm uma base naval, e pela província central de Homs. 

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