Fechar o círculo, Ano Um

O exemplo da saga da diáspora judaica é a demonstração cabal de que nenhum dique, nenhuma muralha, pode deter o curso da história.

Joshua Dawane Berry é um cidadão norte-americano, nascido na Florida e filho de pais norte-americanos. Nada no seu nome lembra qualquer hipótese de ascendência sefardita portuguesa. E no entanto, este homem de 42 anos apresentou à Comunidade Israelita de Lisboa um pedido de certificado atestando essa ascendência, em conformidade com o decreto-lei promulgado a 27 de Janeiro de 2015, permitindo a concessão da nacionalidade portuguesa por naturalização a descendentes de judeus sefarditas.

Com base nos documentos apresentados, fica-se a saber que Joshua D. Berry é descendente por via materna de Diogo (Samuel) Ribeiro Nunes “cristão novo médico” nascido em 1668 em Idanha-a-Nova e condenado pelo “Santo Oficio”. O seu processo decorre entre 1703 e 1706 e, após “mandado por a tormento” e consequente confissão “assentando na crença dos seus erros e judaísmo por que foi prezo e acusado”, é condenado a “carcere e habito perpetuo e que vá ao auto publico da Fé”. Como não podia deixar de ser, os seus bens foram sequestrados e ele próprio despojado, entre outras coisas, de “um paliteiro de prata”.

Em finais de 1726, Diogo foge exilando-se em Londres, onde também se encontra o sobrinho, António Nunes Ribeiro Sanches, médico e filósofo famoso, que será o médico pessoal da czarina Catarina da Rússia. No Reino Unido, Diogo volta ao judaísmo ancestral: toma o nome de Samuel, faz-se circuncidar e casa-se de novo com a mulher, desta vez segundo o ritual judaico. Mas fica na cidade pouco tempo: em 1732 parte, encabeçando um grupo de 42 judeus, para a colónia estabelecida na Geórgia, EUA, pelo rei Jorge II da Inglaterra. Desembarcam a 17 de Julho de 1733, em Savannah, Geórgia. Vencidas as resistências iniciais à instalação de judeus, a família Ribeiro Nunes estabelece--se na cidade e está na origem da primeira sinagoga do Sul dos EUA, Mickvé Israel, fundada em 1735 por judeus maioritariamente de origem hispano-portuguesa. A relação genealógica entre Joshua Dawane Berry e o seu antepassado Samuel (Diogo) Ribeiro Nunes é documentalmente demonstrada e comprovada, tal como os elementos históricos acima referenciados.

Na sua carta de motivação, Joshua D. Berry narra o processo afectivo que o fez descobrir a sua ascendência portuguesa, a vontade de honrar e manter a herança histórica familiar que o motivou em ensinar aos filhos a língua portuguesa. E, quando tomou conhecimento da lei portuguesa de 2015, Joshua não hesitou: “O círculo tem de ser fechado — os descendentes de Samuel Nunes agora são bem recebidos na sua pátria ancestral”.

Faz agora um ano que a “lei do retorno” foi promulgada pelo Presidente da República. Ao longo deste tempo, recebemos centenas de pedidos de certificação por parte de requerentes judeus e não-judeus alegando e comprovando, melhor ou pior, a sua ascendência sefardita. Certificámos muitos, também recusámos outros. Nem todos os processos que chegam à comunidade são constituídos de forma tão exemplar como o de Joshua Berry, conjugando historiadores, genealogistas e paleógrafos, portugueses e americanos. Alguns requerentes “sabem” que são descendentes de judeus ibéricos, mas as provas não são suficientes, outros não “sabem”, mas esperam que se descubra. Apesar disso, todos contam uma história e é sempre uma história que percorre o mapa do mundo. Narra na primeira pessoa a errância de um grupo humano que transformou a sua fraqueza em força — fazendo da sua dispersão uma rede dinâmica de laços comerciais que atravessavam mares e continentes, e sorvendo da convivência de culturas e identidades múltiplas o fermento intelectual e ideológico do qual surgiram vultos da estatura de Baruch ou Bento Espinosa.

Cada história é uma história, mas à sua maneira a saga da família Ribeiro Nunes da qual descende Berry espelha a história da diáspora judaico-portuguesa no seguimento das conversões forçadas de 1497 e da instauração do tribunal da Inquisição em 1536. Permite-nos entender por que razão tantas destas pessoas terminam as suas cartas de motivação afirmando que recuperar a nacionalidade de que foram destituídos é, acima de tudo, uma homenagem aos seus antepassados, um fechar do círculo.

Alguns destes homens e mulheres virão para Portugal, a maioria provavelmente não. Mas todos eles, se beneficiarem da naturalização, ficarão sem dúvida mais próximos da “pátria perdida” e poderão voltar a dar o seu contributo pessoal. Numa época em que tantos países, cegos, ou pressionados por uma propaganda demagógica e anacrónica, trancam as suas fronteiras à entrada de refugiados e imigrantes, o exemplo da saga da diáspora judaica é a demonstração cabal de que nenhum dique, nenhuma muralha pode deter o curso da história. O círculo acaba por se fechar. Mesmo 400 anos depois.

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