A mulher que fala sem abrir a boca

Gett – O Processo de Viviane Amsalem é a história de uma mulher que quer recuperar o controlo da sua vida numa sociedade onde são os homens quem decide. O co-realizador Shlomi Elkabetz explica os desafios de um fenómeno internacional que chega esta semana a Portugal

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Desde a sua apresentação na Quinzena dos Realizadores em Cannes 2014 que Gett - O Processo de Viviane Amsalem se tornou no mais recente fenómeno da cinematografia israelita. A história que nele se conta ancora-se numa singularidade local: qualquer divórcio apenas pode ser concedido num tribunal rabínico e se o marido assim o desejar.

Gett fala de uma mulher que embarca numa longa batalha para conseguir o divórcio do marido que já não ama, mas que se recusa terminantemente a dar-lho. Viviane Amsalem fica, por isso, com a vida num limbo, incapaz de andar para a frente enquanto a situação não ficar resolvida. A personagem foi criada por Ronit Elkabetz, actriz internacionalmente aclamada (A Visita da Banda, Cinzas e Sangue), em 2004 em To Take a Wife, primeiro filme de uma trilogia escrita e dirigida pela actriz com o irmão Shlomi Elkabetz, prosseguida em 2008 com 7 Days.

Mas que não se pense que é preciso ter visto os filmes anteriores para ver Gett (o título, já agora, corresponde à designação legal hebraica da palavra “divórcio”). O que podia, no papel, parecer um simples caso da vida de interesse restrito tem vindo a conquistar a crítica e o público – primeiro em Israel, onde o filme se tornou num enorme êxito comercial e levantou uma série de questões sobre o “divórcio” entre as leis rabínicas e a sociedade contemporânea; em seguida por todo o mundo, onde a luta de Viviane para vai de encontro aos “telhados de vidro” de uma sociedade ocidental que continua a ser profundamente patriarcal. Foi por aí que começou a conversa com Shlomi, 43 anos, co-realizador e co-argumentista, de passagem por Lisboa para apresentar Gett na edição 2015 da Judaica Cinema em antecipação à estreia comercial esta semana.

Gett obteve um impacto internacional muito superior aos vossos outros filmes sobre Viviane.
Sabíamos que o tema era explosivo, e que o filme conta uma história muito simples: ela diz sim e ele diz não, e é tudo. Achámos desde o princípio que podia chegar a uma audiência mais alargada. Mas ao mesmo tempo sabíamos que era um filme difícil, porque se passa num único cenário, tem poucas personagens... Quando o mostrámos em Cannes pela primeira vez fiquei em choque. As pessoas falavam com o écrã, riam-se, aplaudiam... Virei-me para a Ronit e disse-lhe que me sentia como se o estivesse a ver com um público israelita. O filme transcendia culturas, chegava ao público de um modo muito visceral.

A que é que atribui isso?
É a história de uma mulher que quer ser livre. Não interessa se está em Israel, nos EUA ou em Portugal; é um pássaro engaiolado que quer voar e alguém está a brincar com a porta da gaiola.

Mas é um filme que questiona directamente um certo estado de coisas na sociedade israelita.
Antes de Gett fiz um filme chamado Testimony, em que reuni depoimentos de combatentes palestinianos que dei a actores israelitas para ler em hebreu. Fui condenado por três anos por esse filme e passei o tempo a ser acusado de não gostar do meu país. Ora eu adoro o meu país! E Testimony era uma carta de amor, onde apontava o que há de bonito e o que há de feio nele. Gett é outra coisa: procura retratar uma sociedade muito complexa através da história de uma mulher. Tentei não julgar as personagens, pintar o marido como mau e a mulher como boa. Isso não existe! Temos de abrir o debate e para o conseguir é preciso manter todas as opções em aberto. Tentámos criar um retrato complexo da sociedade israelita à volta de questões importantes sobre a definição de uma identidade: como se define hoje quem é judeu, como é que se lida com casamentos e divórcios, mortes e nascimentos...

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A personagem de Viviane Amsalem foi criada pela actriz Ronit Elkabetz com o irmão Shlomi Elkabetz; da colaboração resultou uma trilogia MIGUEL MANSO
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Como é que escolheram o modo de contar a história? Cada momento do julgamento podia ser um filme completamente diferente.
O tribunal é suposto ser um local objectivo, onde podemos ver o que se passa, julgar e tomar decisões. Mas na minha curta experiência em tribunal, percebi que não há objectividade de espécie nenhuma, apenas múltiplas subjectividades. O meu primeiro fio condutor foi nunca fazer um plano de conjunto do tribunal. E depois pensei: o que aconteceria se, num jogo de ténis, em vez de filmar o jogo focasse a câmara nos jogadores? Não tinha certeza que resultasse, mas se resultasse podia recriar e reconfigurar o cenário de modo praticamente infinito. E como o filme falava de vários pontos de vista sobre uma mesma história, quis ir alternando entre esses pontos de vista, tentar examinar a verdade de acordo com as várias personagens. Cada momento tem muitos rostos; eu vejo-o como divertido, você vê-o como trágico, outra pessoa de outra maneira, e à medida que vamos adicionando pontos de vista a complexidade do momento vem ao de cima. E percebemos durante a rodagem que se fôssemos fiéis e justos para com cada ponto de vista, sem o julgarmos, estávamos a preservar a verdade. O mais importante era controlar o ritmo e a velocidade emocional do filme.

Há qualquer coisa de teatral no filme, mas ao mesmo tempo é extremamente cinematográfico...
Temos tido muitas propostas para adaptar Gett ao teatro. E eu digo sempre que vão perceber que apenas têm uma peça sobre dois advogados... (risos) As nossas personagens principais não falam! A Viviane fala pouco e nem sequer se mexe, passa o tempo sentada, e a mesma coisa com o marido, que muitas vezes nem aparece. A força do que está a acontecer é criada pelo diálogo da montagem entre a Viviane e aquilo que ela está a ver e quem a está a ver a ela. Acho que conseguimos que a Viviane fale o filme todo sem abrir a boca! Sempre que começávamos uma nova sessão do julgamento, rodávamos primeiro o diálogo, que despachávamos muito depressa e depois começávamos a rodar o que chamávamos de “filme mudo” - as reacções das personagens que não falavam. Foi aí que concentrámos os nossos esforços. Percebemos muito depressa que tínhamos de criar um monólogo interno das personagens através do “filme mudo”.

Ronit parece muitas vezes ser filmada como Maria Falconetti na Paixão de Joana d'Arc de Carl Theodor Dreyer. Isso foi deliberado?
Quando apresentámos o nosso primeiro filme, To Take a Wife, em Veneza, há dez anos, toda a gente nos falava do filme de Dreyer, que nunca tínhamos visto. Nem eu nem a Ronit começámos no cinema; ela vinha do teatro, eu vinha da escrita, e decidimos juntar-nos para fazer cinema, e nessa altura o nosso conhecimento do cinema não era ainda muito alargado. Quando vi finalmente A Paixão de Joana d'Arc, Gett começou a desenhar-se na minha cabeça. Sabíamos que queríamos fazer um filme de tribunal, e foi muito bonito fechar o círculo, ir de um filme comparado a Dreyer a outro inspirado por ele... Mas se reparar na montagem do Dreyer, que foi feito em 1928, nem a MTV monta assim hoje em dia. O ritmo desse filme foi muito inspiracional. Eu não queria fazer um teledisco, mas Gett tem um corte todos os cinco segundos, todos os dez segundos.

E os planos parecem todos ser muito mais longos...
Exacto! Eu e a Ronit desmanchámo-nos a rir quando lemos uma crítica, acho que foi nos Cahiers du Cinéma, onde diziam que o filme era um único plano-sequência (risos). O que é considerado cinema de qualidade hoje é rodar planos muito longos, de dez minutos, com 20 pessoas no enquadramento... Queríamos explorar coisas diferentes. Gett é muito influenciado também pelo cinema americano, pelo ritmo do cinema americano.

O filme é co-assinado, e Ronit está o filme todo em frente à câmara. Como é que trabalham em conjunto?
Antes de falarmos com quem quer que seja, escrevemos o guião juntos. Depois ensaiamos, só eu e ela, sem actores, durante seis meses – e isso não tem a ver com interpretar as personagens, mas sim com encontrarmos as imagens que queremos, e durante esse tempo aproveitamos para editar o guião. As nossas conversas não tem nada a ver com o filme – falamos de sonhos, do que queremos criar, aquilo que queremos que fique do filme depois de acabarmos. Quando chegamos ao plateau não falamos de todo, já dissemos tudo o que era preciso. E nunca dividimos o trabalho: trabalhamos juntos com os actores e com as câmaras. Temos muita paciência um com o outro e somos muito atentos; às vezes só a olhar para a Ronit percebo o que está mal. Ela é o meu sismógrafo, e eu sou o dela. Colocamos a câmara, olhamos um para o outro e percebemos logo que não é ali. Partilhamos o trabalho e o ponto de vista, e penso que é isso que é especial: somos irmãos, amigos, temos uma história em conjunto muito longa, mas somos muito diferentes.

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