Literacia na saúde, precisa-se!

É que saber soletrar e ler é uma coisa, perceber o conteúdo de um texto é outra. Mas outra ainda é ter pensamento crítico sobre o que se lê.

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JON NAZCA
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Foi a invenção da letra ou das letras juntas, que representavam o som, que tornou possível multiplicar a comunicação entre os seres humanos e fixar as histórias que andavam de boca em boca. Através das letras ficámos a saber uma parte da história do passado da humanidade. Apenas aquela que estava nas letras. Em Portugal, chegámos ao 25 de Abril com 26% de analfabetos nas pessoas com mais de dez anos, mais as mulheres que os homens e portanto era ainda através do som, das palavras ditas, que se transmitia o saber das práticas, alguma história dos antigos e a narração dos poderes invisíveis.

Como aconteceu em outros períodos revolucionários, como o da República, a paixão da instrução percorreu o país no período revolucionário do 25 de Abril de 1974 e atualmente não há nenhuma pessoa até aos nove anos de idade, com condições mentais suficientes, que não saiba ler e escrever. Hoje temos um país alfabetizado. E mesmo os mais velhos, que restam sem saber ler nem escrever, vivem num mundo de signos e sabem pôr a cruzinha no partido que desejam no papel de voto eleitoral.

Tal como nos períodos revolucionários que se seguiram à Revolução Francesa, tal como nos bairros da Comuna em França, tal como entre os nossos republicanos, pensava-se que, uma vez ilustrado o “povo”, sendo a leitura dos jornais e dos livros, individual ou coletiva, uma fonte de sabedoria, se caminharia para um mundo de conhecimento e de progresso. E assim se passou. Não foi em vão que Garcia de Orta e outros deixaram escrito aquilo que, com olhar científico, observador da realidade, fixaram como conselhos de saúde, propriedades das plantas, descrição de doenças, a que deram nomes. O mundo ficou melhor assim. Mas esperávamos ainda melhor. É que saber soletrar e ler é uma coisa, perceber o conteúdo de um texto é outra. Mas outra ainda é ter pensamento crítico sobre o que se lê.

Uma invasão inesperada

Todavia a divulgação do que se sabe, do que se inventa, do que se imagina, invadiu-nos com uma rapidez inesperada. A aplicação da energia informática e a capacidade de programação caíram-nos no colo muito mais rapidamente do que o nosso desenvolvimento de pensamento crítico. Em pouco tempo deixámos de fazer fotocópias no único sítio que as fazia em Lisboa, deixámos de ir pedir ao Centro de Documentação da universidade para obtermos a cópia de artigos científicos de que necessitávamos. Foi muito bom para a ciência. Mas de repente o mercado tomou conta desses meios.

Era previsível, mas nós não previmos. Ou poucos previram. Sobre a saúde e a doença uma invasão de “explicações” e falsos conhecimentos ocupou exatamente aquilo que ainda é desconhecido. E as soluções, os remédios, os programas, ocuparam o lugar do que já é conhecido e pode ser seguro.

O pensamento mágico, que era constituído anteriormente por palavras e falares transmitidos de boca em boca, transformou-se em “ciência”, inventou fontes e tem um suporte material que em segundos abrange milhões de pessoas. Temos agora acesso a fontes científicas credíveis, com métodos rigorosos e investigadores que dão a cara. Demos saltos no conhecimento. Desenvolveram-se as vacinas, inventaram-se os antibióticos e a insulina. Descobriu-se a síntese do ácido ascórbico (vitamina C), sabe-se as fontes de vitamina D e o seu efeito, foi-se ao salgueiro buscar a aspirina e à galega medicinalis a metformina. Substituíram-se extratos por sínteses químicas. Mas não descobrimos como contrariar a onda de pensamento mágico que invadiu a mente das populações alfabetizadas. Quantas vezes oiço pessoas de nível universitário, dizerem-me que tomam “suplementos naturais”, porque não têm “químicos” e não saberem que são diretamente licenciados pelo Ministério da Agricultura (são “plantas”) sem passar pelo Infarmed!

Perante isto, não basta fazermos explanações ou escrevermos para convencidos ou esclarecidos. Será necessário uma campanha. E uma campanha exige decisão política e dinheiro. É certo que alguns meios podem ser usados sem custos. As aulas de cidadania nas escolas podem ter a saúde como tema, nos Centros de Saúde podem organizar-se sessões, discursos, reuniões, aulas de motricidade humana para todas as idades como alguns já o fazem. Mas campanha mesmo é às horas nobres na televisão, é em sites atraentes para jovens e adultos, é em cartazes e faixas na rua.

Lembro um cartaz, já lá vão uns ministérios, que alertava para não serem usados antibióticos na gripe. Foi uma raridade. No programa de luta contra a obesidade, como nos outros programas da Direção Geral da Saúde, nunca tivemos dinheiro para nada, exceto quando obtivemos algum de uma empresa petrolífera. De que valiam as reuniões com a indústria acerca do açúcar e do sal nos alimentos? Ao fim de uns anos valeram legislação (2019), cuja aplicação não é escrutinada. Entretanto os nossos doentes, os nossos amigos, os jovens, são objeto de informação ao nível de um click, propositadamente distorcida, com interesse comercial por trás, ou simplesmente fruto dos delírios de espíritos inventivos. Daí ao “dizem que”, às modas, aos temores, aos conselhos, vão uns segundos.

Só poderemos vencer esta vaga perigosa com as mesmas armas para os mesmos espectadores. É urgente um programa de literacia, com pouco discurso, com poucos documentos (mais uns) mas com real vontade de eficácia.


A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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