“Mãos limpas” e os rebuçados das fontes jornalísticas

Ao jornalismo exige-se que, se possível, investigue por conta própria, evitando ser pombo-correio de uma engrenagem que por receio, distração ou falta de tempo tem escapado ao escrutínio.

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As recentes declarações de dois antigos procuradores-gerais da república, Cunha Rodrigues e Souto Mora, criticando o aviso a jornalistas e a sua deslocação antecipada, para a Madeira, a fim fazerem a cobertura das buscas que duas centenas de agentes policiais iriam realizar no Funchal, deixando no ar a ideia de um incompreensível entendimento cúmplice entre os media e o sistema judicial e sequente violação do segredo de justiça, suscita razoável preocupação.

Mais ainda, quando é sabido que no caso de Cunha Rodrigues, o magistrado há vários anos que se mantinha em silêncio, num discreto distanciamento perante um universo que bem conhece e do qual, afirmou agora, “se exige”, perante o sucedido, “uma explicação pública, cabal e urgente”.

Igualmente instado a comentar o aparato e circunstâncias da operação, Souto Moura lamentou também mais uma violação do segredo de justiça, a avaliar pela presciência jornalística do continente que, em seu entender, só poderia ter estado a acompanhar as diligências porque fora antecipadamente avisada. O resultado desse convénio traduzir-se-ia em mais num enorme fogo de artifício mediático, numa versão moderna e mais tecnológica dos antigos julgamentos populares.

Ainda recentemente e de forma justificada, ouvimos em defesa dos media o argumento que eles são um baluarte das sociedades contemporâneas e um elemento constitutivo da democracia. Mas para isso é preciso que estejam do lado da democracia e estejam disponíveis para a defender. Estão?...

Se podemos aprender alguma coisa com a História, é inevitável recuarmos umas décadas para lembrar as consequências da famosa operação judicial conhecida por Mãos Limpas e que, no essencial, conduziu à implosão do sistema político italiano e à emergência e afirmação da direita radical e de figuras como Berlusconi e Matteo Salvini. A dita operação foi um fracasso e alguns estudiosos como David Broder, em Primeiro eles tomaram Roma (2022), chega mesmo a falar em ação fraudulenta. Mas o espetáculo estava montado — e se os media adoram um bom show!... Como sucede hoje, em que quais cães perdigueiros que se contentam na busca do que lhes é mandado abocanhar — o jornalismo watchdog é outra coisa e mais séria — confundem investigações policiais e suspeitas judiciais com o conceito de justiça. E basta que a sua sempre bem colocada fonte pingue uma informação, para que o espetáculo prossiga à boa maneira do antigo coliseu romano, embora hoje sem leões nem gladiadores.

Com os anos, a luta e os processos refinaram-se. Os processos de comunicação também. Porém, quando as investigações e suspeitas dão em nada, apesar de o bom nome das pessoas em causa ter tido tratos de polé, a norma é um certo silêncio distraído, como que nada tendo a ver com mais um arquivamento. Shakespeare, em Othello, já antecipava o sentido com que podemos sintetizar muitos desses casos: “Quem me rouba a honra priva-me daquilo que não o enriquece e faz-me verdadeiramente pobre”.

Um exemplo: recentemente, o Ministério Público arquivou o caso contra a presidente da Câmara Municipal de Matosinhos, Luísa Salgueiro, depois de a informação passada aos media, segundo a qual ela estava a ser alvo de inquérito, a ter posto em lume brando durante um ano. Algum dos participantes ativos no espetáculo mediático questionou o MP acerca do desfecho de um caso que se sabia ser um nado-morto? Mais: no âmbito da exibicionista Operação Influencer Duarte Cordeiro viu o seu nome vilipendiado publicamente, em três processos, sem que alguma vez tenha sido constituído arguido — muito menos ouvido. Em democracia tem-se como normal a ideia de que os fins não justificam os meios. Enfim, salvo algumas exceções, como temos visto e assistido — como sucedeu com um ex-governante que esteve sob escuta durante quatro anos — sempre com a presença amplificadora dos media sequiosos de carne fresca e de bons momentos televisivos, mesmo que à custa do atropelo das regras deontológicas.

Em 1994, após a razia política que a referida Operação Mãos Limpas proporcionou, ficaram criadas as condições para a entrada em cena de Silvio Berlusconi e do seu partido, Forza Italia. Com Berlusconi, que potenciou como ninguém, em seu favor, o mundo mediático a que pertencia e dominava, o discurso político radicalizou-se e o modo como abertamente procurava a controvérsia pode até conferir-lhe o título de pioneiro neste tipo de estratégia, que anos mais tarde outros radicais da direita populista como Erdogan e Trump haveriam de adotar. O caminho foi-se fazendo e atapetando a preceito. Hoje, como é sabido, o país, sob a liderança de Meloni, tem o governo mais à direita desde a II Guerra.

Não se extraia destas linhas a mínima ideia, sequer suspeita, de que nos opomos à ação policial e do MP. Devem fazer com todo o rigor e no recato que as suas funções exigem, o melhor trabalho que as suas capacidades e meios lhes permitem. Ao jornalismo exige-se que esteja atento e, se possível, que investigue por conta própria, evitando ser mero pombo-correio de uma engrenagem complexa que por receio, timidez, distração ou falta de tempo tem escapado ao necessário escrutínio que em democracia todas as entidades e instituições devem estar sujeitas e que constitui função do jornalismo saber cumprir.

Em suma, perante uma qualquer "operação mãos limpas” é desejável que o jornalismo não lave as suas mãos das responsabilidades que lhe compete assumir na defesa da democracia, como reiteradamente se diz; isto é, tem de saber e ser capaz de atuar em prol da sua dignidade e dignificação profissional, evitando a instrumentalização das fontes, por muito bem colocadas que estejam e apetecível possa ser o rebuçado que de forma gentil e interesseira lhe oferecem. E cuja oferta não visa nem a dignificação do jornalismo nem a valorização da democracia. Mesmo que a dita guloseima possibilite aos jornalistas chegar à porta da casa de Rui Rio antes dos agentes, para o show time da ordem.

A propósito: qual o resultado dessa investigação — uma entre tantas, com direito a co-produção televisiva em direto?

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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