E o Sinal de Pontuação do Ano é…

Ainda que quase todos vivam obcecados com as vírgulas, tentarei provar que a edição inaugural do Sinal de Pontuação do Ano só pode ter um vencedor: as aspas.

Agora que já conhecemos a Palavra do Ano, porque não eleger também o sinal de pontuação que mais se notabilizou em 2023?

Não é simples pontuar uma frase. Tudo começa na primária, exclamar ou interrogar era canja (e não “canja”), só que quando chegava a vírgula, a professora era obrigada (e não “obrigada”) a recorrer a uma estratégia pedagógica que felizmente caiu em desuso – o puxão de orelhas: “Não se põe uma vírgula entre o sujeito e o predicado!”. Inserir o sinal de pontuação no sítio certo é fetiche de nazis da gramática. E ainda que quase todos vivam obcecados com as vírgulas, tentarei provar que a edição inaugural do Sinal de Pontuação do Ano só pode ter um vencedor: as aspas.

No que toca a pontuar, eu sou dos que gostam de ficar a ver. Abro o jornal devagarinho, uma página para cada lado, na expectativa de que o jornalista maroto introduza as aspas onde eu mais aprecio: no sítio delas.

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Valha-me Deus, que neste país se vilipendiam aspas todos os dias! Se as tirarmos, só uma criança de 4 anos, geralmente limitada a interpretações literais, perguntaria ao pai ou à mãe onde se compra uma mala tão grande.

Desafio o leitor a passar os olhos por alguns jornais desportivos (cuidado com as conjuntivites!), que os colunistas da bola são os maiores prevaricadores, tal e qual aqueles árbitros que tanto os exasperam que dão amarelo ao mínimo contacto entre os jogadores.

Defrontou o FC Porto na Champions e é disputado por "tubarões" italianos (O Jogo)

Exemplos não faltam, mas o meu favorito será sempre o “onze” inicial.

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Como se não bastasse, onde não deveria haver aspas, encontramos cada vez mais plicas (' '), que nunca puseram um pé numa gramática e cuja função é grafar coordenadas ou unidades de tempo, e não disfarçar aspas sem convicção.

Mas cautela, que as aspas multirresistentes também já colonizaram os media generalistas:

Porto ganha novo “pulmão” em agosto de 2024 (Porto Canal)

O DN publica esta semana um conjunto de “embates” entre simpatizantes de cada um dos principais concorrentes à liderança do PS (Capa, Diário de Notícias)

Linha Évora-Elvas: o “atalho” que nos vai ligar mais depressa e melhor a Espanha (Expresso)

Irmãos escapam a ‘voo’ de carro para a morte (capa, Correio da Manhã)

Apoios à mobilidade “verde” vão contra vontade dos utilizadores (Eco)

Costa “dá a mão” a Pedro Nuno para defender o PS e o seu legado (PÚBLICO)

… o que não acontece, por exemplo, no Montijo, que “ganha” no critério de proximidade, mas é o pior em questões ambientais (Expresso)

Para terminar, um hat-trick:

As tendências estatísticas do Portimonense na I Liga dizem-nos que é a equipa que mais remates, cruzamentos e passes longos permite aos adversários e a que mais tempo passa no seu terço do campo. “Trocado por miúdos”, é uma equipa habituada a jogar em bloco baixo. Se a este hábito juntarmos um duelo frente ao Sporting temos um “cocktail” difícil de contornar: havia jogo para “autocarro”. (PÚBLICO)

A overdose de aspas talvez não justifique um puxão de orelhas, nem sequer um “puxão de orelhas”, mas é o leitor quem sai a perder, já que tem que se interrogar constantemente se lhe estará a escapar alguma citação mais nebulosa ou se é seu interlocutor que não sabe usar as aspas.

Na maioria dos casos, a solução é simples: tirar as aspas e avaliar se a mensagem é compreensível sem elas. O Livro de Estilo do PÚBLICO é bastante elucidativo: «[As aspas] servem também para dar ênfase ou assinalar um sentido figurado — guerra de “irmãos”, não se tratando de irmãos de sangue —, mas este recurso só é eficaz se for raro, para além de que a ênfase é dada pela própria força das palavras ou expressões idiomáticas, compreensíveis pelo contexto».

O leitor é bem capaz de descortinar múltiplos sentidos, e as aspas só os deverão sinalizar quando não é evidente a qual deles se refere o autor. Se o Joaquim, que divide casa com o Araújo, sai de manhãzinha e deixa um post-it no frigorífico a dizer Hoje trago uma “amiga” para jantar! – são as aspas que irão impedir o Araújo de arruinar o “convívio” pós-prandial que o Joaquim anseia com tanta expectativa.

Parabéns às aspas (hashtag salvem os tubarões italianos)! E que em 2024, o vencedor não seja o mesmo.

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