Agricultura: a dura tarefa de alimentar o mundo sem o destruir

A agricultura é um dos focos da COP28. Sendo uma grande fonte de emissões de CO2, precisa de reduzir a sua pegada. Mas como chegar lá, quando há 800 milhões de humanos subnutridos ou famintos?

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De acordo com a FAO, a subnutrição ou a fome afectam 21% dos africanos.,De acordo com a FAO, a subnutrição ou a fome afectam 21% dos africanos. Bartosz Hadyniak/GettyImages,Bartosz Hadyniak/GettyImages
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Apanha de cenouras na zona da Lezíria do Tejo Maria Abranches
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Monda do arroz Nelson Garrido
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Silo se soja no Brasil Nacho Doce
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Palavras duras: “O mundo está mais faminto do que nunca”, avisava o Programa Alimentar Mundial das Nações Unidas (PAM) num comunicado recente. Décadas de esforço para debelar a fome começaram a ruir em 2014 e nos últimos três anos a tendência acentuou-se. As perturbações da Covid-19 continuam a sentir-se; a guerra da Ucrânia fez disparar em 149% os preços dos fertilizantes, deixando os agricultores dos países mais pobres sem capacidade de manter as suas produções; agora, e cada vez mais, os choques climáticos “destroem vidas, colheitas, meios de subsistência e comprometem a capacidade das pessoas se alimentarem pelos seus meios”.

A COP28 que começou na quinta-feira no Dubai elegeu a agricultura e os sistemas alimentares como um dos seus principais temas de reflexão. Por serem “uma chave para uma resposta efectiva à mudança climática mundial”. A produção de alimentos é responsável por 22% das emissões de gases de efeitos de estufa de origem humana. Reduzir a produção de carne tornou-se um imperativo. Cortar o uso de adubos químicos ou pesticidas também. Mas como se pode articular estes travões à crise climática com a necessidade de se alimentar o mundo?

A Humanidade vive no rasto de uma revolução bem-sucedida, a Revolução Verde. Depois de 1960, a ciência agronómica e a indústria química produziram saberes e compostos químicos que sustentaram a explosão da população mundial. “Entre 1950 e 2000, a produção global de alimentos triplicou, sem que a área de cultivo tenha triplicado”, nota José Manuel Lima e Santos, professor do Instituto Superior de Agronomia (ISA). Os adubos azotados ou venenos como o DDT aumentaram a produtividade por hectare entre 250 e 300%. “Uma revolução contra a natureza”, nota Francisco Ferreira, professor universitário e dirigente da associação ambientalista Zero. Mas em favor da comida acessível para milhares de milhões de pessoas.

Para muitos, os danos dessa revolução foram longe de mais. Para outros, ou a revolução continua, ou será impossível aumentar a produção alimentar em 60%, a meta que a FAO (Fundo das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação) estabeleceu como necessária para satisfazer uma população que rondará os 10 mil milhões de humanos em 2050. Para outros, ainda, a questão não se põe em termos de tudo ou nada. O uso de produtos agro-químicos pode reduzir-se numa transição para novas formas de agricultura mais sustentável.

Joga-se um braço-de-ferro. A redução das emissões de gases de efeito de estufa e de nitrogénio entrou nos diplomas das políticas públicas para a agricultura, mas muitas vezes contra a opinião dos agricultores. A iniciativa Do Prado ao Prato, da União Europeia, parte do Pacto Ecológico Europeu, aponta para a necessidade de a agricultura biológica representar 25% do total da superfície agrícola utilizada em 2030 — actualmente são 5,9%; a aplicação de fertilizantes deveria cair em 50%. Uma Lei do Restauro da Natureza apontava para a recuperação de 30% dos ecossistemas degradados na União em nome do ambiente e da biodiversidade. Estas ambições, porém, foram reduzidas no Parlamento Europeu pela oposição das bancadas mais à direita do espectro político. O uso do glifosato, um herbicida, foi prolongado por mais uma década.

O meio-termo

Onde está a razão? Até que ponto há margem para se acabar depressa com os adubos químicos ou os fitofármacos? “É uma impossibilidade”, diz Francisco Avillez, professor do ISA jubilado. “Reduzindo a intensidade dos factores de produção, reduz-se a produção de alimentos”, concorda o seu colega do ISA e sócio na AgroGés, uma empresa de consultoria, Francisco Gomes da Silva. Sim, “há uma aparente contradição entre esses objectivos”, diz João Madeira, agrónomo e presidente da Cooperativa Agrícola do Guadiana. Lima e Santos exclui uma “lógica de sim ou não” da pergunta e acredita que será possível “reduzir a quase nada” o uso de produtos químicos na agricultura. Até Francisco Ferreira reconhece que “a mudança tem de ser sustentável”. Desde que haja mudança porque, sublinha, “precisamos de uma agricultura diferente”.

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É essa diferença que está na origem das maiores discussões. Porque não há uma agricultura, mas muitas e diferentes. Os campos de milho do Midwest dos Estados Unidos ou as intermináveis monoculturas de soja do Centro-Oeste do Brasil nada têm a ver com a agricultura familiar do Zimbabwe. A produção intensiva de bovinos dos Países Baixos não se compara com o pastoreio de cabras na Turquia.

“Em alguns casos, é possível e recomendável reduzir adubos químicos ou pesticidas, em outros casos é importante que se aumente o seu uso”, diz Lima e Santos. O professor do ISA esteve dois meses e meio nas províncias moçambicanas da Zambézia e do Niassa e constatou aquilo que os relatórios internacionais relatam: que a fome afecta por regra as famílias de agricultores de países pobres e alarga-se em zonas ricas em biodiversidade. “O uso de adubos químicos pode facilmente triplicar a produção” nessas zonas, diz; e o controlo de pragas, ou de animais que se alimentam da agricultura, deve aumentar para que a fome seja contida.

“Onde podemos aumentar a produção de alimentos? Não é na Europa. É em países pobres como Moçambique”, diz Lima e Santos. O alargamento da área agrícola está fora de questão, porque, como nota Francisco Avillez, “isso só se consegue com o aumento da desflorestação”, seguindo um modelo como o que destruiu um quinto da maior floresta tropical do mundo, a Amazónia, em 50 anos. Por isso, a necessidade de aumentar a produção de alimentos no futuro próximo só se faz com a intensificação agrícola nesses países. De acordo com a FAO, a subnutrição ou a fome afectam 21% dos africanos.

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Não é só à escala do planeta que as diferentes agriculturas exigem respostas diferenciadas. Na Europa não se pode comparar os impactes no clima de países com agricultura industrial com países mais extensivos. Portugal, por exemplo, regista o menor consumo de fertilizantes sintéticos da UE, correspondendo a menos de metade do valor médio europeu. Não porque haja entre os agricultores uma maior propensão para o modelo biológico – 5,3% da superfície agrícola em Portugal. Apenas porque “nos últimos anos foram abandonados muitos terrenos marginais onde se fazia agricultura”, na opinião de Fernando Gomes da Silva.

São, por isso, os países com rendimentos altos ou médio-altos que têm de fazer mais esforços para que a agricultura se alinhe com o combate global à crise climática. E não apenas porque são os que, segundo a FAO, respondem por 75% dos “custos escondidos” da agricultura – danos ambientais, desperdício, etc.. Também porque têm acesso a uma rede de protecção de ajudas públicas (572 mil milhões de euros por ano em subsídios ou apoio aos preços), são auto-suficientes em bens alimentares e dispõem de um aparelho científico capaz de garantir a transição para uma agricultura mais ecológica.

Palavra à ciência

A ciência, das tecnologias de informação à bioengenharia, dispõe hoje de respostas para produzir mais alimentos com menos emissões. Na equação, entram velhos conceitos, como o da eficiência ou das rotações de culturas. Mas apareceram conceitos novos. O da agricultura de precisão, por exemplo, que através de sensores determina quais as necessidades de água ou de matéria orgânica de uma planta ou de uma parcela em determinado momento; ou o da agro-ecologia, que recorre a sementes mais resistentes ao calor ou à seca, com moléculas mais eficientes na absorção de azoto ou no controlo natural de pragas. “A natureza é uma guerra entre organismos”, diz Lima e Santos. Na síntese de João Madeira, “temos de pôr os fungos e as bactérias a trabalhar para nós”. Francisco Gomes da Silva usa fungos no arrozal da família que fica na zona das lezírias para aumentar a assimilação do azoto através de uma maior actividade microbiana.

Uma parte do caminho está feito: os investimentos públicos em ciência ligada à agronomia duplicaram entre 1986 e 2016, não apenas nos países mais desenvolvidos do hemisfério Norte, mas também em países como a China, a Índia e o Brasil. Estes movimentos mudaram a dinâmica das cadeias mundiais da alimentação: se os Estados Unidos permanecem como a maior potência agrícola do mundo, a China subiu para o segundo lugar e o Brasil disputa posições cimeiras em produções críticas para a segurança alimentar como o milho ou a soja.

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Mais do que a lógica pura da produtividade, a agricultura do futuro terá de contribuir para a gestão da água, a biodiversidade ou a protecção dos solos. Realidades velhas que se impuseram como problemas novos. O tema dos solos, por exemplo, só “se pôs” a Francisco Avilez “de há uns dez anos para cá”. Na Europa, 5% a 60% dos solos estão degradados e esse valor sobe para os 85% em Portugal. “Em Portugal tínhamos uma ciência do solo com imenso valor que hoje está reduzida ao trabalho de três ou quatro pessoas, uns carolas”, nota Francisco Avillez. Três das dez medidas do PEPAC, o programa nacional para a gestão da política agrícola europeia, têm como alvo a protecção de terrenos pantanosos para se “evitar a degradação dos solos ricos em carbono” ou a rotação de culturas para a “preservação das suas características”.

A outra forma de a agricultura reduzir a sua pegada de carbono depende do encurtamento dos circuitos de distribuição. “Os bens alimentares produzidos na proximidade ou os produtos da época são os que dispensam consumos de energia na conservação ou no transporte”, nota Francisco Ferreira. “Não pagamos o que se deve pagar sempre que comemos papaia do Brasil ou kiwi da Nova Zelândia”, acrescenta. Mas estarão os consumidores dispostos a prescindir da fruta exótica ou fora de época? Se assim fosse, “agora estaríamos a comer ou laranjas ou maçãs”, responde Francisco Gomes da Silva. “Não acredito que o género humano, depois de chegar a um certo perfil de alimentação, esteja disposto a prescindir dele”, acrescenta.

Um modelo inviável

Enquanto se criam e afinam os modelos da próxima revolução, a agricultura tem de dar respostas imediatas a uma situação dramática. A FAO concluiu no seu mais recente relatório sobre a alimentação que em 2022 havia entre 691 milhões e 783 milhões de pessoas ameaçadas pela fome. O PAM reconhecia este ano que pelo menos 129 mil pessoas passam fome no Burkina Faso, no Mali, na Somália e no Sudão do Sul.

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“A ironia flagrante é que, globalmente, nós produzimos comida suficiente, mas falhamos na sua distribuição equitativa. Esta má regulação global ameaça mais do que a necessidade imediata de comida no mundo: estimula a instabilidade geopolítica, exacerba as carências e faz disparar as migrações globais”, escreve o filantropo, escritor e activista Tony Robbins, num artigo recente da Time. O PAM alertava a esse propósito que, quando, em 2015, ficou sem fundos para alimentar a população da Síria, “as pessoas ficaram sem alternativa a não ser abandonar os campos [de refugiados], causando uma das maiores crises de refugiados da história europeia recente”.

Neste jogo de prioridades, enquanto a agricultura tem de contribuir para a redução de emissões, tem ao mesmo tempo de enfrentar os custos da crise climática. “Sim, temos de reduzir emissões, mas o clima vai mudar e temos de apostar cada vez mais na adaptação às alterações climáticas do que no seu combate”, diz Francisco Gomes da Silva. A tarefa é imensa e não é um problema de amanhã. Os agricultores da região de Mértola, por exemplo, já o sentem na pele há dez anos, pelo menos. O aumento do calor e a falta de chuva “estão a gerar a fadiga dos recursos” e “fazem os animais aproximar-se dos seus limites fisiológicos”, diz João Madeira.

O aumento de charcos e de pequenas barragens, financiadas com dinheiro europeu, vai permitindo alimentar a resistência dos agricultores. Porque, “a normalidade ou desapareceu ou mudou”, diz o dirigente cooperativo. Ainda assim, “na zona onde trabalho não há abandono, os agricultores continuam a resistir”. Até quando, não se sabe.

A mudança é, por isso, uma questão existencial. Mas, nota João Madeira, não há mudanças a qualquer custo: “A transição para um modelo mais sustentável pode acontecer, mas tem de ser uma mudança ponderada e baseada na ciência, não na ideologia imposta pelos grupos de pressão ligados aos meios urbanos”.

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