Lei do Restauro da Natureza: o bom senso imperou por uma dúzia de votos

Foi um espetáculo triste de se assistir, com muita gente contra a lei a defender posições que nada têm de doutrina política e que caem ao primeiro confronto com a realidade dos que sabem dos assuntos

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Acaba de ser votada favoravelmente no Parlamento Europeu, ainda que de forma tangencial, a proposta de lei de restauro da natureza apresentada pela Comissão Europeia. É certamente a peça legislativa europeia mais importante para a biodiversidade desde a Diretiva Habitats de 1992. É igualmente um pilar do Pacto Ecológico Europeu, e abrirá caminho para reverter a taxa de perda de biodiversidade na Europa no contexto de alterações climáticas. Tem como ambição o restauro ecológico de pelo menos 20% das áreas terrestre e marinha dos países da UE até 2030, com obrigações muito concretas dos Estados-membros, após um período de análise de cada situação.

A proposta já foi coxa para votação em plenário, tendo sido chumbada pelas comissões de agricultura, pescas e ambiente, força dos lobbies de parte considerável do setor primário. Apesar das clarificações por parte da Comissão, houve uma partidarização da questão, liderada pelo Partido Popular Europeu, como arma de arremesso ao vice-presidente Frans Timmermans, no sentido de o enfraquecer politicamente, tentando não chamuscar a Presidente Ursula von ser Leyen.

Foi um espetáculo triste de se assistir, com muita gente contra a lei a defender posições que nada têm de doutrina política e que caem ao primeiro confronto com a realidade dos que sabem dos assuntos. Ao mesmo tempo, a cedência nas alterações para que a lei passasse transforma-a quase numa vitória de Pirro. César Luena, o deputado espanhol relator da proposta no parlamento, tem todas as razões para estar contente. Ainda assim, na conferência de imprensa que se seguiu à votação, apesar de respeitosamente distribuir os louros por todos os intervenientes que levaram à vitória, não conseguiu esconder um brilho mais forte nos olhos quando falava da Presidência espanhola da União Europeia, de Pedro Sánchez, ou do excelente trabalho dos Socialistas e Democratas, a sua família política. É normal, mas é pena. É pena que um tema tão importante e que acharíamos agregador de um traçado comum para um caminho futuro quase não passe de um instrumento de pura chicana política.

A Península Ibérica é a região da Europa com maior biodiversidade e será com muita probabilidade a mais afetada pelas alterações climáticas, segundo a maioria das projeções científicas. Aos que dizem que são só modelos, a ciência responde com o confronto dos modelos preditivos feitos a partir dos anos 70 do século XX com os dados reais. Em geral, estes modelos acertaram. Mas o pior cego é aquele que não quer ver, e, para agradar à base social de apoio, vale tudo. Ter de dizer que uma lei de restauro da natureza não é contra as pessoas porque as pessoas fazem parte da natureza é o nível zero da retórica política. Quando defendemos uma agricultura intensiva com recurso excessivo a pesticidas e fertilizantes, ou uma pesca de arrasto, pondo em cima da mesa o papão da soberania alimentar da Europa, é tão-só porque não queremos pôr na equação os impactos negativos nos ecossistemas que essas práticas induzem. Conheço peixes sem pescadores. Não conheço pescadores sem peixes. Mas assim vamos.

Hoje estou contente. A aprovação da Lei do Restauro da Natureza abre um caminho. Um caminho que teremos de fazer com ou sem esta lei, e que já vem tarde. Amanhã estarei mais reticente sobre a falta de pressa e de ambição em aplicá-la. Um dia de cada vez.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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