Temos de aceitar que somos animais

Mais uma vez convinha ver uns documentários da National Geographic para perceber que um bom pai é aquele que se dispõe a cuidar da mãe.

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EDUARDO MOSER/SANDRADESIGN
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Querida Ana,

Porque é que temos tanta dificuldade em aceitar que somos animais — racionais, é certo, mas antes de mais nada animais como todos os outros que habitam este planeta?

Se dúvida houvesse bastava ver como reage uma mãe com o seu recém-nascido: se a deixarem agir segundo a sua verdadeira natureza comporta-se tal e qual qualquer outra mãe do reino animal, das galinhas aos leões — protege as suas crias, não deixa ninguém chegar perto delas e, se lhas tiram, entra em parafuso. Em parafuso literalmente, rodando sobre si mesma numa aflição que só a boa educação e o desejo de não ofender a sogra — à mãe morde, com certeza! — levam a procurar esconder.

Mesmo entregar o bebé ao pai, nem que seja para um banho rápido, é um esforço e, ao primeiro guincho, não consegue resistir a vir “salvá-lo”, mesmo que racionalmente saiba perfeitamente que não corre perigo.

Está no ADN das mães. São milhões de anos de Evolução e, felizmente, hoje começamos a respeitar mais essa herança. Ainda há dias li no PÚBLICO uma reportagem fabulosa sobre o contacto pele com pele entre pais e bebés prematuros, que o Hospital de S. João no Porto promove com resultados espantosos. Estamos a reaprender.

Mas sabes, Ana, depois destes dias em que estive (foi tão bom, tão bom), com o teu novo sobrinho, conclui que o pai, os pais homem, e até os avós têm mesmo de ser preparados para a realidade, para que não sintam as mais instintivas reacções maternas como um “chega para lá”.

Cada vez mais envolvido na gravidez, a frequentar todos os cursos e preparações, sempre ao lado da mulher durante o parto, sendo talvez até o primeiro a pegar no bebé, pode ser muito difícil para um pai moderno aceitar que naquelas primeiras semanas mãe e bebé se fundem numa paixão que não deixa (ou só a custo) mais ninguém entrar.

Mais uma vez convinha ver uns documentários da National Geographic para perceber que um bom pai é aquele que se dispõe a cuidar da mãe, para que ela cuide do bebé, tomando consciência de que à medida que a criança cresce vai ter todas as oportunidades de construir com ele uma relação mais a dois.

Quanto às avós, sejam gratas pelos minutos em que as vossas filhas/noras vos deixam pegar no bebé, e devolvam-no rapidamente à mãe, tratando de ajudar os filhos naquilo que eles realmente precisam nestas primeiras semanas — refeições prontas e roupa lavada.


Querida Mãe,

É mesmo verdade! Esquecemo-nos tantas vezes de que apesar de todas as mudanças que vemos no mundo, um bebé de agora não é diferente de um bebé de há mil anos. Tal como as mães.

Isto não quer dizer que “como se fazia antigamente" é que era bom, mas significa, sim, que temos de ser realistas em relação às expectativas que pomos nos bebés e nos pais (ou a nós próprios), para que não andemos sempre por aí cheios de culpa ou a criar conflitos desnecessários entre casais que, na verdade, só precisavam de estar com as expectativas mais alinhadas.

A psicanálise apresenta o pai como o “elemento separador”, aquele que faz de ponte entre a mãe e o mundo. Exactamente porque não tem todas as hormonas e alarmes ao rubro e pode lentamente ir ajudando o bebé a ver para além da mãe. Mas, e isto é muito claro quando os bebés são um pouco mais velhos e um estranho os aborda, vão olhar sempre primeiro para a mãe (ou para o cuidador principal), como quem pergunta “Posso confiar?”, e só depois é que respondem. Isto faz com que a mãe tenha que dar o OK a que o pai “entre”. E para que isso aconteça não se pode entrar a matar, ou a desvalorizar a relação da mãe com o filho, ou mesmo a gozar com ela, como tantas vezes vejo fazer, de forma mais ou menos velada. Como se fosse ridículo uma mãe querer estar coladinha ao seu bebé o tempo praticamente todo. Ou dizendo coisas como: “Pois, dizes que estás cansada, mas depois não me deixas ficar com ele.”

O facto de a maior parte das mães ter de pôr o filho numa creche mal a curta licença acaba, torna este problema ainda mais complexo. As mães vão contra o seu instinto mais primário e fazem das tripas coração para serem capazes de confiar num lugar onde os seus bebés vão passar horas a fio, e quando chega finalmente a casa com ele, provavelmente ainda lhe é mais difícil deixar “entrar” o pai, a avó ou a sogra, porque se sente tão culpada e tão em défice.

Um pouco mais velhos, e depois do período inicial em que é mesmo difícil a mãe largar o bebé, os pais têm de perceber, também, que ligarmo-nos a uma criança leva tempo e dá trabalho. É um investimento e no início não dá muito retorno. Não se pode sentir como uma ofensa pessoal se o bebé chora ou “pede” que seja a mãe a fazer tudo.

Os pai/avós têm de conseguir suportar esse desconforto, validando-o, mas sem desistir, devolvendo o bebé à mãe mal a coisa pareça não estar a ser tão gratificante (para eles). Só com essa entrega persistente é que se consegue ultrapassar a resistência e passar a ser um dos colos mais seguros do mundo. Dá trabalho, mas faz milagres. Faz milagres à relação entre pais e filhos, mas principalmente à relação entre marido e mulher. Porque acredite, mãe, não há nada no mundo mais sexy do que um homem verdadeiramente envolvido connosco e com os nossos filhos.

Beijinhos.


O Birras de Mãe, uma avó/mãe (e também sogra) e uma mãe/filha, logo de quatro filhos, separadas pela quarentena, começaram a escrever-se diariamente, para falar dos medos, irritações, perplexidade, raivas, mal-entendidos, mas também da sensação de perfeita comunhão que — ocasionalmente! — as invade. E, passado o confinamento, perceberam que não queriam perder este canal de comunicação, na esperança de que quem as leia, mãe ou avó, sinta que é de si que falam.

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