Atrasar, enfraquecer, disfarçar: as tácticas dos lobbies contra a lei de redução dos pesticidas

Semear dúvidas onde a ciência é consensual, influenciar negociações, propor “falsas soluções”, fazer “greenwashing”: ONG denuncia repertório a favor dos pesticidas. Eurodeputados votam esta semana.

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Tem havido esforços para encontrar novas soluções, mais sustentáveis ambientalmente, para combater doenças nas plantações sem usar pesticidas Anna Costa
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O Parlamento Europeu vota esta quarta-feira a sua proposta para a negociação de uma das principais bandeiras da estratégia Do Prado ao Prato, dedicada a um sistema alimentar mais sustentável: reduzir a utilização de pesticidas químicos em pelo menos 50% e torná-los mais seguros. Contudo, um relatório da ONG Corporate Europe Observatory (CEO) mostra que as negociações do Regulamento de Utilização Sustentável de Pesticidas (SUR, na sigla em inglês) têm sido fortemente influenciadas pelos lobbies da indústria com possíveis custos tanto para a saúde humana como para o ambiente.

No relatório Sabotar a acção da UE para reduzir o uso de pesticidas, descreve-se um “ataque incessante à legislação sobre redução de pesticidas” por parte do lobby industrial e outros grupos de interesse em 2022 e 2023. O Corporate Europe Observatory analisou centenas de documentos da Comissão Europeia e das 27 representações permanentes dos Estados-membros, documentos submetidos a consultas públicas, eventos de lobby, conteúdos patrocinados publicados na comunicação social, e ainda questões colocadas aos actores envolvidos.

As estratégias utilizadas, conclui o relatório, são as mesmas usadas pela indústria dos combustíveis fósseis e outras indústrias poderosas - atrasar os processos questionando as bases científicas, enfraquecer as propostas através da influência nos bastidores e mascarar os seus próprios impactos junto da opinião pública -, com resultados semelhantes: atrasos, muitas vezes de anos (ou décadas), de legislação essencial para proteger a saúde e a biodiversidade.

Empatar, enfraquecer, disfarçar

O relatório descreve que o negócio dos pesticidas na UE vale mais de 12 mil milhões de euros por ano. O mercado está concentrado nas mãos de quatro grandes produtores: Bayer, BASF, Corteva e Syngenta, que investem milhões de euros em lobby. Além das empresas, as pressões para manter o uso de pesticidas sintéticos vêm também de associações como a CropLife Europe, a Euroseeds e a Copa-Cogeca, e ainda think tanks como CEFIC e FarmEurope.

A nova regulamentação para os pesticidas, cuja proposta foi apresentada pela Comissão Europeia em Junho do ano passado, tem estado sob ataque desde o início, explica o relatório da Corporate Europe Observatory. A campanha começou com “uma velha táctica de lobby” para causar atrasos: pedir mais avaliações de impacto em nome da “segurança alimentar”. Com a crise da covid-19 e a invasão russa na Ucrânia, estes apelos tornaram-se mais insistentes.

Desde então, têm surgido também estudos promovidos pelas partes interessadas que alegadamente demonstram os impactos desta redução gradual da utilização de pesticidas em 50%. Estes estudos são insistentemente “martelados” pelos lobbies, descreve o relatório, e acabam por ser também utilizados por eurodeputados, em particular do campo mais conservador, para defender objectivos menos ambiciosos na revisão da Directiva sobre Utilização Sustentável de Pesticidas (2009/128), que se baseia no princípio de que os pesticidas sintéticos só devem ser utilizados como último recurso.

A influência é por vezes visível: em Julho de 2023, por exemplo, a comissão de Agricultura do Parlamento Europeu deveria votar o seu parecer sobre o SUR, mas o eurodeputado Franc Bogovič, do Partido Popular Europeu, apresentou um pedido de última hora para adiar a votação para Outubro, alegando que “precisava de mais tempo para avaliar os resultados de um estudo que tinha encomendado ao Instituto Agrícola da Eslovénia sobre o impacto da lei de redução de pesticidas na agricultura do seu país”. O site Politico revelou que, no dia anterior a esse pedido de adiamento, Bogovič se tinha reunido com o grupo de influência CropLife Europe.

Ao mesmo tempo, as empresas e grupos de lobby a favor da utilização de pesticidas avançam com o que o relatório classifica como estratégias de greenwashing, promovendo conteúdos em meios de comunicação social e apregoando soluções “tecnológicas” que disfarçam os verdadeiros impactos que este tipo de agricultura tem nos solos e nos ecossistemas.

“Factualmente incorrectas e/ou enganadoras”

Estes argumentos foram analisados em pormenor - e desmentidos - num relatório de verificação de factos publicado pela Iniciativa de Cidadania Europeia “Salvar as abelhas e os agricultores”, uma petição que no início deste ano reuniu 1,1 milhão de assinaturas a exigir a redução em 80% na utilização de pesticidas na agricultura europeia, assim como apoio aos agricultores para fazerem essa transição.

“Há poucas provas que sustentem a narrativa de que a redução dos pesticidas e a ecologização da agricultura ameaçam a segurança alimentar”, explicavam em Março as mais de 140 ONG que fazem parte da coligação que organizou a petição europeia, que tem sido analisada pelas instituições.

“Por outro lado, existe um amplo consenso científico de que, tendo em conta as emissões ambientais de azoto, gases com efeito de estufa e pesticidas, a manutenção do actual sistema agrícola intensivo em factores de produção contribuiria significativamente para ultrapassar os limites do planeta e ameaçar a produção alimentar.”

Por estas razões, afirmam os ambientalistas, “a maior parte das declarações em análise eram factualmente incorrectas e/ou enganadoras”.

Ambições reduzidas

Ao longo do último ano e meio, foram levantadas diversas questões contra a proposta da Comissão sobre a redução gradual da utilização de pesticidas químicos: a natureza obrigatória e a ambição dos objectivos de redução propostos, a proibição da utilização de pesticidas em áreas sensíveis, se a Gestão Integrada de Pragas seria obrigatória ou voluntária, e ainda qual seria o apoio financeiro aos agricultores para fazerem a transição para uma produção com baixo teor de pesticidas.

São questões legítimas, mas o debate que os activistas classificam como enviesado tem resultado numa legislação que fica aquém do necessário. “Desde que o SUR foi anunciado, empresas como a Bayer e a BASF e os seus grupos de lobby e aliados políticos têm liderado uma campanha para empatar, minar ou mesmo fazer descarrilar várias propostas do Pacto Ecológico”, afirma Nina Holland, autora do relatório da CEO.

“Quando a UE anunciou o seu Pacto Ecológico e a estratégia Do Prado ao Prato, parecia reconhecer a necessidade de agir com urgência para enfrentar as grandes crises ecológicas dos nossos tempos”, reconhece a investigadora, especialista em ciências do ambiente. “Contudo, o resultado é que os anos de lobby da indústria dos pesticidas significam que, esta semana, o Parlamento Europeu vai votar uma versão muito esvaziada do regulamento de redução de pesticidas.”

O Parlamento Europeu vai votar a sua posição sobre o regulamento sobre uso dos pesticidas esta quarta-feira, antes de iniciar negociações com o Conselho da União Europeia, onde estão representados os Governos. Com a proximidade das eleições europeias, agendadas para Junho do próximo ano, já tem sido possível perceber uma maior polarização política também nas questões da biodiversidade: em Julho, a proposta da comissão de Ambiente do PE para a Lei do Restauro da Natureza quase foi chumbada pelo Plenário, tendo sido aprovada uma versão enfraquecida do diploma que procura restaurar habitats degradados na União Europeia.

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