O sexo biológico é binário

O contributo genético de cada um dos progenitores para a descendência são os gâmetas. Nos humanos, os gâmetas são os espermatozóides e os óvulos.

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Ovócito humano logo após a fecundação: os pró-núcleos masculino e feminino ainda bem visíveis antes da fusão Ovócito humano após fecundação/Alan Handyside/Wellcome
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Comecemos pelo fim: a dignidade de cada ser humano não depende da existência de uma correspondência entre características biológicas particulares e o papel de género que cada um desempenha. Todos devem ter os mesmos direitos, isso está relacionado em primeira linha com valores humanistas universais e não com a biologia. Este texto faz parte da série quinzenal (à sexta-feira) “Como perder amigos rapidamente”, que é sobre aqueles casos em que a ciência e os dados contrariam muitos dos influencers e opinion makers.

Os papéis de género são os comportamentos e responsabilidades que uma determinada sociedade ou cultura atribui aos indivíduos, com base no que historicamente se configurou como o esperado para os géneros feminino ou masculino. Os papéis de género são construídos socialmente e variam de uma cultura para outra, para além de mudarem ao longo do tempo. A distinção – clara – entre género e sexo biológico remonta aos anos de 1950. Muito se passou nos últimos 70 anos e não há hoje nenhuma boa razão para não admitirmos que os papéis de género possam ser não-binários.

Ao contrário do género, o sexo não é uma construção social. É certo que há autores que defendem o contrário, tais como a filósofa norte-americana Judith Butler, que recorre a argumentos teóricos desligados da realidade biológica. Mas a reprodução sexual faz há muito parte do mundo vivo, indiferente a quaisquer construções sociais dos humanos.

Obviamente que o objectivo de praticar sexo não é sempre a reprodução, aliás, em geral não é. Mas, do ponto de vista biológico, o sexo tem que ver com reprodução. Na realidade, até há uma forma bem mais simples, que funciona como uma máquina de fotocópias: uma célula gera uma cópia igual a si própria. Já a reprodução sexual dá muito trabalho – pode haver lutas ferozes, dolorosas e destrutivas pelo acesso a potenciais parceiros. Porque é que a natureza despende tantos recursos na reprodução sexual? A resposta é a inovação: o sexo permite gerar indivíduos com uma combinação genética nova, distinta da dos progenitores. E algumas dessas novidades podem ser vantajosas para a sobrevivência e para a reprodução, tornando-se prevalecentes ao longo das gerações seguintes. O sexo é uma vantagem evolutiva para as espécies que o praticam, sendo que “sexo” pode significar coisas muitas diferentes, consoante a espécie em causa.

O contributo genético de cada um dos progenitores para a descendência são os gâmetas. E, como o leitor sabe desde a escola primária, nos humanos os gâmetas masculinos são os espermatozóides e os femininos os óvulos. A vasta maioria das espécies que se reproduzem sexualmente tem exactamente os mesmos dois tipos de gâmetas que nós.

Os gâmetas femininos são grandes, em número limitado, e albergam uma grande quantidade de recursos que contribuem para o desenvolvimento inicial da célula fecundada (o zigoto). Por outro lado, os gâmetas masculinos são pequenos, produzidos em enormes quantidades, e constituídos em larga medida por material genético, não contribuindo grande coisa em recursos. São duas estratégias bastante distintas e a natureza precisa de ambas: da generosidade dos gâmetas femininos e do número astronómico de gâmetas masculinos, que aumentam a probabilidade de uma fusão. É o tamanho dos gâmetas e a estratégia correspondente que define o sexo biológico. O sexo é binário porque só há dois gâmetas.

Mas há vários equívocos sobre o sexo. Um deles é o de que é necessário que existam machos e fêmeas. Nem sempre é o caso, há várias espécies, como os caracóis, que são hermafroditas, produzindo ambos os gâmetas. O Nemo, o peixe-palhaço da Disney, é um hermafrodita sequencial: o maior macho do cardume torna-se uma fêmea.

Outro equívoco é a ideia de que os cromossomas determinam o sexo. O homem tem um par de cromossomas XY e a mulher XX. Mas há espécies que não têm cromossomas sexuais: são factores ambientais, como a temperatura, que espoletam a diferenciação sexual. O desenvolvimento sexual em humanos é complexo e pode dar origem a indivíduos com características de ambos os sexos. Mas isso não põe em causa o carácter binário do sexo, pois só existem dois tipos de gâmetas.

O que torna os seres humanos únicos são os papéis de género. E muitas pessoas legitimamente desafiam o carácter tradicionalmente binário desses papéis, que são aquilo que as sociedades esperam para os comportamentos distintos de homens e mulheres. Quanto ao sexo, não assumimos nenhum lugar especial, estamos com inúmeras espécies na árvore da vida, possuímos um gâmeta pequeno e “barato” e outro maior e mais bem provido. E não há qualquer necessidade de ancorar a diversidade de papéis de género a um argumento naturalista falso, como o de que o sexo biológico não é binário.

Bioquímico e divulgador de ciência

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