Para todos os géneros

Por muito que até me custe, tenho de concordar que o “fácil” ainda é ser-se homem, caucasiano, heterossexual. E também conservador (não entendido enquanto posição política), medroso (prudente, se preferirem) e (sobretudo) calado. Já que não tenho maneira de deixar de ser as primeiras três coisas, resta-me trabalhar as restantes.

Na disciplina universitária de Diferenciação e Desenvolvimento a última parte é sobre a formação embrionária do aparelho reprodutor. Explico o papel dos cromossomas X e Y, o modo como, dependendo das circunstâncias, são ativados diferentes genes (SRY, SOX9, FOXL2, WNT4...), e sintetizadas hormonas (estradiol, testosterona) que podem influenciar vários aspetos. Falo nos ductos de Wolff e de Müller, e mostro como a partir de estruturas que de início são comuns e não se conseguem distinguir, lentamente se diferenciam ovários ou testículos, vagina ou pénis. Ou, nalguns casos, não se formam por diferentes motivos, ou surgem estruturas mistas.

Tudo isto é muito científico: genes, moléculas, vias de sinalização, células. Mas a partir daqui são inevitáveis questões sobre comportamento sexual e de identidade de género em humanos (bem como imutabilidade versus plasticidade), uma realidade à qual não fujo, até porque os alunos perguntam o que é que a Biologia tem a oferecer sobre esse tema. Que tem, embora não se deva usar exclusiva e acriticamente a Biologia (nem negá-la). Apesar de achar o comportamento animal fascinante, pessoalmente evito o antropocentrismo de buscar noutras espécies justificações para ações humanas, porque há exemplos para todos os gostos. Mas este não é um tema fácil por dois motivos: tem uma forte componente cultural, social e política, e a investigação que existe nessa área (obviamente que também por isso) exige uma análise mais crítica e profunda do que a envolvida, por exemplo, em alterar o sexo ou comportamento de animais de laboratório manipulando alguns dos genes ou hormonas mencionados acima (o que é possível). Há conhecimentos estabelecidos que se ensinam mostrando as fortes provas científicas existentes; mas, se é muitíssimo importante ensinar adequadamente a dúvida, não escondamos que é mais difícil num ambiente que privilegia respostas seguras num exame. Por isso esta parte discuto, respondo, dou bibliografia, deixo aos alunos a possibilidade de procurar mais e refletir por conta própria, mas não avalio; e no último ano letivo confesso não ter abordado esse tópico, por achar que o ensino não-presencial não era um veículo apropriado.

Exemplos de diversidade, que não fossem a (riquíssima) diversidade individual, foram muito poucos na minha juventude, a todos os níveis. Os divórcios eram motivo de espanto; a homossexualidade oscilava entre a experimentação pontual, o insulto fácil, e o silêncio. Na Universidade a coisa mudou, mas não tanto quanto se pensaria, identidades assumidas (fora a heterossexual) poucas. Lembro-me de uma pessoa abertamente “trans” em Coimbra, ponto. Hoje há outra visibilidade, e vejo na geração dos meus filhos e no comportamento dos meus alunos maior abertura, a todos os níveis. Não é a ideal, continuam a ser inacreditáveis a descriminação e a violência com base em género e identidade sexual, mas evoluímos alguma coisa, e sabemos mais.

Esta reflexão começou verdadeiramente no início do século, quando o governo brasileiro estabeleceu o Programa de Licenciaturas Internacionais (PLI), trazendo à minha disciplina 60 novos alunos por ano. Alunos naturalmente variados, mas com uma percentagem alta de interessados em questões de género e de identidade sexual, mais alta do que estatisticamente me parecia provável. Na verdade, os mais frontais consideravam estar numa espécie de paraíso de tolerância a esse nível, olhavam para o PLI e para Portugal como parte de um mecanismo de libertação, tanto quanto de educação. Algo que me pareceu na altura muito estranho, conhecia (achava eu) a minha cidade, e tinha do Brasil uma imagem estereotipada. Um sociólogo poderia ter-me explicado que muitos desses alunos vinham de meios ultraconservadores evangélicos, cujas reais caraterísticas eu desconhecia, e que seriam trazidas à ribalta pela ascensão de Jair Bolsonaro; algo que me parece óbvio hoje. Por muito cautelosa que a minha aula fosse, admitia realidades que eram negadas noutros contextos. Mas sobretudo: não era por se falar ou não das coisas que elas existiam, a identidade sexual não é um vírus que se pega, ao contrário da discriminação. E contra isso há que informar, dar bibliografia ajustada a cada caso. E deve ser obrigatório, depois cada um que faça o que quiser com a informação (aprofunde, ignore, refute).

Hoje não penso que haja, por exemplo, mais homossexuais, lésbicas ou pessoas trans (ou violência doméstica) do que “no meu tempo” (que também é este); penso apenas nas vidas talvez mais ocultas que se teriam vivido, e revejo constantemente o passado, com outros olhos. Como quando vi pela primeira vez o musical The Rocky Horror Picture Show (1975), e apenas vislumbrei uma (má) pseudo-comédia de Ficção Científica, não o hino “camp” à libertação sexual, que também é. Não quero é ter de esperar pelo futuro para lamentar não ter dito nada no passado, hoje presente. Onde, por muito que até me custe, tenho de concordar que o “fácil” ainda é ser-se homem, caucasiano, heterossexual. E, como também já percebi dos manuais apócrifos de sobrevivência humana em meio social e profissional (provavelmente Darwin ajuda a explicar), também conservador (não entendido enquanto posição política), medroso (prudente, se preferirem), e (sobretudo) calado. Já que não tenho maneira de deixar de ser as primeiras três coisas, resta-me trabalhar as restantes.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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