Truques e subterfúgios da Fundação para a Ciência e a Tecnologia

Infelizmente, a gestão da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) compromete irremediavelmente a confiança dos investigadores portugueses nesta instituição.

Devo muito da minha carreira científica à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). Foi esta estrutura, criada em 1997 em substituição da extinta Junta Nacional para a Investigação Científica e Tecnológica (JNICT), que me atribuiu a bolsa que me permitiu concluir o meu doutoramento no Reino Unido, que criou programas de contratação de doutorados a que concorri com sucesso, e que financiou o primeiro projeto de investigação que logrei ver aprovado enquanto investigador independente. No entanto, depois de décadas a assistir à forma de atuação da FCT, não posso deixar de expressar a minha indignação perante a forma como esta instituição recorre a expedientes e subterfúgios para tentar iludir aqueles que com ela contam para fazer o seu trabalho científico.

  • Um truque inovador para reduzir o número de candidaturas a financiamento de projetos de investigação. Qualquer projeto científico pressupõe a existência de um investigador responsável (IR), a quem cabe a submissão da candidatura e, em caso de sucesso da mesma, a responsabilidade pela execução dos trabalhos de investigação. Algumas agências de financiamento internacionais, públicas ou privadas, solicitam também a nomeação de um co-IR, desejavelmente alguém experiente, capaz de assegurar a continuidade do projeto perante qualquer eventualidade que coloque em causa a possibilidade de o IR o fazer. Mas a FCT decidiu inovar.

Além de tornar obrigatória a existência de um co-IR em todos os projetos submetidos a concurso (até aqui, tudo normal), criou uma regra tão inaudita como descabida: um co-IR de uma determinada candidatura não pode candidatar-se ao mesmo concurso enquanto IR de um outro projeto, e vice-versa. Como a inclusão de um investigador mais experiente como co-IR de uma candidatura impede-o de submeter o seu próprio projeto a financiamento, não há muitos investigadores seniores disponíveis para desempenhar aquele papel. Na prática, a FCT usa este expediente inovador para limitar o número de candidatos e, desta forma, reduzir o número de candidaturas submetidas a concurso.

  • Um subterfúgio de secretaria para falsear as taxas de sucesso. No final de 2021, a FCT anunciava uma taxa de sucesso de 8,7% no concurso de Projetos de Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico desse ano. Para permitir uma comparação com os números disponibilizados pelas agências públicas de financiamento científico mais exigentes e competitivas, diga-se que aquela percentagem fica muito aquém dos cerca de 20% de sucesso em candidaturas aos National Institutes of Health (NIH) dos EUA, ou dos cerca de 13% dos financiamentos do European Research Council (ERC) da União Europeia.

Mas o problema é ainda mais grave: é que, numa original jogada de engenharia de números, a FCT calculou aquele valor não com base no número total de candidaturas admitidas a concurso, mas sim com base no número de candidaturas que atingiram a classificação de 7 (num total de 9). Ou seja, a FCT reduziu aquele que seria o denominador óbvio desta equação, para assim aumentar artificialmente a taxa de sucesso do concurso. Quando são usados os números corretos, esta passa dos 8,7% anunciados para os 6,2% reais, cerca de 1/3 da dos financiamentos dos NIH e metade dos do ERC. Perante a indignação geral, no concurso de 2022 a FCT apresentou números calculados da forma adequada. Fica por saber se o “engano” de 2021 resultou de incompetência ou malícia.

  • A falsa regularidade dos concursos para financiamento de projetos. Para além da escassez de financiamento, poucas coisas há que afetem mais o trabalho científico que a imprevisibilidade. Uma vez mais, os concursos dos NIH e do ERC servem de exemplo para como as coisas devem ser feitas. Todos os anos estes concursos abrem, o período de candidaturas termina, e os resultados são anunciados nas mesmas datas.

O orçamento pode variar de ano para ano, como é normal que aconteça, mas os investigadores sabem de antemão quando deverão ter os seus projetos escritos e prontos a submeter, e quando podem esperar saber os resultados dessas candidaturas. Isto permite-lhes calendarizar as suas atividades e planear adequadamente as suas tarefas de investigação e de escrita de projetos. Permite-lhes ainda optar por não submeter um projeto num determinado ano, na certeza de que o poderão fazer no ano seguinte, o que não é um pormenor.

Vejamos então o que se passa com os financiamentos da FCT. Segundo a sua própria página na Internet, nos últimos 17 anos abriram nove “Concursos para Financiamento de Projetos de Investigação Científica e Desenvolvimento Tecnológico em Todos os Domínios Científicos”, em 2006, 2008, 2009, 2010, 2012, 2013, 2017, 2020, 2021 e 2022.

As datas de abertura destes concursos variaram de ano para ano, e as da comunicação dos resultados nunca foram anunciadas com antecedência. O mais recente concurso, de 2022, abriu em fevereiro e encerrou em março desse ano, acompanhado de uma nota do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior onde se lia: “A Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) abriu esta terça-feira, dia 8 de fevereiro, o Concurso de Projetos de I&D em Todos os Domínios Científicos, cumprindo, desta forma, a regularidade e a previsibilidade para os grandes concursos.”

Na página da FCT podia, entretanto, ler-se: “O concurso de projetos de IC&DT em todas as áreas científicas tem uma periodicidade anual e integra o conjunto dos grandes concursos estruturantes da FCT”. Tudo parecia estar encaminhado para, finalmente, existir nestes concursos “a regularidade e a previsibilidade” por que toda a comunidade científica ansiava.

Fazendo fé nestes anúncios, os investigadores preparam-se para submeter os seus projetos no primeiro trimestre de 2023. Mas, em dezembro de 2022, a FCT anuncia que o concurso previsto para março de 2023, afinal, abriria apenas em junho desse ano. Só que, a 19 de junho, a FCT anunciava que as “candidaturas ao Concurso de Projetos I&D em todos os domínios científicos vão decorrer em novembro” porque a FCT estaria “a estabelecer sinergias com o PT2030 no sentido de poder alocar um montante de pelo menos 100 milhões de euros ao financiamento deste programa de apoio a projetos, o que representa um aumento de 33% face aos concursos anteriores (75 milhões de euros)”.

Ou seja, adiava-se de novo o concurso, desta vez para tentar aumentar o seu orçamento, como se não fosse possível manter a data e orçamento inicialmente previstos, financiando todos os projetos até esse montante, e identificando os que ficavam em lista de espera para serem financiados se e quando estivessem disponíveis os 25 milhões de euros adicionais. Lá se ia a previsibilidade anunciada, mas pelo menos mantinha-se uma regularidade anual na submissão de projetos.

Eis se não quando, a 30 de outubro de 2023, a FCT anuncia que, afinal, o concurso apenas irá abrir em dezembro desse ano, encerrando em fevereiro de 2024! Desdizendo tudo o que foi dito e escrito, a FCT faz o que poucos acreditariam que seria capaz de fazer: na prática, “salta” um ano de candidaturas a financiamento, já que o último concurso encerrou em 2022 e o próximo apenas encerrará em 2024. É o retomar das más práticas que se julgavam de outros tempos, mas que, afinal, continuam a ser as atuais.

Se não abrir outro concurso para submissão de projetos em 2024, além deste que acaba de ser adiado, então o prometido aumento na verba disponível para a investigação será, na realidade, um efetivo decréscimo. A assim ser, será a machadada final na credibilidade de uma instituição que parecia finalmente querer adotar práticas adequadas à função que desempenha, mas que não consegue sequer manter a ilusão dessa intenção.

A confiança é porventura o elemento mais importante da relação entre as instituições e as comunidades que estas visam apoiar e servir. Infelizmente, a gestão da FCT compromete irremediavelmente a confiança dos investigadores portugueses na instituição que mais devia pugnar pelo desígnio afirmado pelo primeiro-ministro de que “o compromisso de longo prazo é vital para fruirmos, enquanto comunidade, dos muitos benefícios do investimento em ciência”. “Compromisso”, “longo prazo” e “investimento” são, sem dúvida, ótimas intenções. Só é pena que, aparentemente, não passem disso mesmo.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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