Manual de Resistência: porquê disrupção pública?

Precisamos aceitar que vivemos uma anomalia de há muitas gerações: desde os anos 60 que a indústria fóssil sabe através das suas próprias pesquisas, que a sua atividade nos encaminha para o colapso.

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Comecemos por olhar a realidade de frente.

Vivemos este Verão um cenário apocalíptico com recordes a serem batidos em todas as frentes. O dia mais quente de que há registo em todo o planeta ocorreu a 6 de julho de 2023. Julho de 2023 foi o mês mais quente a nível global que há registo. Na realidade, o Verão de 2023 foi o mais quente da Terra desde o início dos registos globais em 1880, de acordo com os estudos do Instituto Goddard de Estudos Espaciais (GISS) da NASA.

O mundo foi varrido por catástrofes, desde os incêndios florestais no Canadá mais devastadores que há registo: 37 milhões de hectares queimados, que levou a cidade de Nova Iorque a respirar o pior ar que há registo. Os EUA, por sua vez, assistiram aos incêndios mais mortíferos do último século no Havai, que dizimou a cidade de Lahaina, na ilha de Maui, desalojando milhares de pessoas e matando mais de 100.

Do outro lado do Atlântico, vimos a Grécia a ser consumida por chamas infernais naqueles que se tornaram os maiores incêndios florestais na Europa. Depois dos incêndios, vieram as tempestades que inundaram dramaticamente não só a Grécia como a Bulgária e a Turquia. Tempestade esta que seguiu em direção à Líbia, deixando um cenário de destruição para trás que levou à morte de 11.300 pessoas e ao desaparecimento de mais 10 mil.

Meses antes, chuvas torrenciais causaram inundações desastrosas em Pequim, matando dezenas de pessoas naquela que foi a maior precipitação em pelo menos 140 anos, de acordo com o Gabinete Meteorológico de Pequim. Também o Norte da Índia foi devastado por inundações mortíferas e deslizamentos de terra na sequência de uma monção sem precedentes.

A África Oriental continua a debater-se com a pior seca extrema dos últimos 40 anos. Nova Iorque declarou estado de emergência depois de uma precipitação extrema que levou pelo menos a 13 mortes. E este foi o Setembro mais quente da história, uma anomalia climática nunca antes vista. Se conseguiu chegar até aqui, permita-se respirar fundo, fechar os olhos, encontrar um lugar onde seja possível parar, talvez num minuto de silêncio.

Falar de recordes climáticos não é uma mera abstração científica, matemática e analítica da realidade. Estamos a falar de consequências terríveis nas nossas vidas. Estamos a falar de vidas humanas e meios de subsistência a serem ameaçados. Isto é o início da resposta à pergunta do título: porquê disrupção pública?

A normalidade é um embuste

Aceitar o atual colapso climático como sendo a normalidade é pura alienação. O monopólio das instituições, governos e empresas, tem vendido uma normalidade inexistente a fim de manter o seu poder político e económico. Se nos queremos ancorar no realismo, precisamos de aceitar que vivemos uma anomalia de há muitas gerações: desde os anos 60 que a indústria fóssil sabe através das suas próprias pesquisas, que a sua atividade nos encaminha para o colapso.

Empresas petrolíferas como a Exxon e a Shell efetuaram avaliações internas do dióxido de carbono libertado pelos combustíveis fósseis e previram as consequências planetárias dessas emissões. Em 1988, um relatório interno da Shell projetou que os níveis de CO2 iriam duplicar relativamente aos valores pré-industriais até 2030, adiantando também os efeitos catastróficos desse aumento.

Tendo o conhecimento nas suas mãos, a indústria decidiu conscientemente aceitar esses riscos em nosso nome, às nossas custas e sem o nosso consentimento. Aliás, parte do plano incluiu manipular a opinião pública, a fim de criar o negacionismo climático que impediu ação climática decisiva e lhes valeu quase três mil milhões de dólares por dia em lucro. Com este dinheiro seria possível acabar quase 30 vezes com a fome mundial. (As estimativas actuais sugerem que, a partir deste ano, precisamos que os governos doadores invistam cerca de 37 mil milhões de dólares por ano até 2030 para combater a fome extrema e crónica.)

A nós, vale-nos sentir os efeitos da contínua destruição em massa de tudo o que amamos. É normal ter governos aliados a empresas a executarem a nossa extinção, premeditada e coordenadamente, para garantir lucros a criminosos?

Reconhecer esta emergência dá-nos uma responsabilidade acrescida

Se reconhecemos que estamos em emergência, temos a responsabilidade de agir. Se não o reconhecermos ou não agimos, continuamos alienados. O nosso sistema económico está desenhado para não funcionar, já que assenta num ímpeto de expansão infinita num mundo com recursos finitos. A sociedade que conhecemos não está viva por causa deste sistema, mas apesar dele. Portanto, o seu fracasso no que diz respeito a garantir as condições básicas à vida das pessoas neste planeta, tornam-no ilegítimo.

Esta ilegitimidade levanta a questão: sabendo o que sabemos, vamos decidir pactuar com os responsáveis pelo boicote à nossa vida e a tudo o que amamos?

A história ensina

As conquistas sociais chave da sociedade são fruto de um confronto contínuo com a normalidade que nos condena e da capacidade de elementos chave conseguirem disromper o sistema. Este foi o caso das vitórias conseguidas pelo movimento contra o Apartheid ou o movimento das Sufragistas. É preciso tomá-los como exemplo, mas, neste caso, ampliá-lo à escala global. As emissões matam. Os responsáveis estão conscientes disso, deixando-nos sufocar numa câmara de gás a nível planetário.

A escolha entre se queremos ou não disrupção não existe, a disrupção está em curso. Ela é genocida e ecocida. A história ensina que resistir agora significa desarmar todas as armas que estão a ser usadas para boicotar as nossas vidas.

Porquê o espaço público?

Somos nós, tu e eu, que estamos e vamos continuar a sofrer as consequências destes atos de violência, porque não possuímos cofres para construir abrigos de luxo para o colapso civilizacional. Tu e eu temos não só legitimidade como obrigação de nos defendermos. Tu e eu somos agentes da mudança, somos os recursos humanos necessários para criar a rutura necessária com a normalidade que nos condena. O espaço público diz-nos respeito porque é ele o alvo destes ataques. Quando a democracia dos Estados nos hipoteca o presente e o futuro à escala global, a democracia significa tornarmo-nos a disrupção dos seus planos.

Depois de voltar a olhar a realidade de frente, deixo a nota: queria ter o céu azul como inspiração, mas as cinzas das catástrofes dão-lhe um ar funesto. A escolha é entre dar o corpo ao manifesto ou virar carne para canhão.

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