Andreas Malm: no activismo climático, “não temos nenhuma luta revolucionária a acontecer”

O activista sueco acredita que são precisas acções mais severas para travar as alterações climáticas. A violência não está do lado dos activistas, defende, mas de quem destrói o planeta.

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O activista e escritor Andreas Malm Code Rood/Wikipedia Commons
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E se lhe fizessem um convite para esvaziar os pneus de todos os carros SUV do seu bairro? Esvaziar o combustível de um grande iate? Bloquear o descarregamento de um navio de petróleo? Ou, imagine, invadir uma central de gás natural e fechar a torneira ao gasoduto? A sabotagem está fora dos repertórios mais consensuais de participação cívica, mas para o sueco Andreas Malm é precisamente a peça que falta na luta para salvar as democracias do poder do “capital fóssil”.

No seu livro How To Blow Up a Pipeline, traduzido em várias línguas desde o lançamento em 2021, e que inspirou o guião de um filme homónimo lançado em Abril deste ano, Andreas Malm, investigador na área da Ecologia Humana na Universidade de Lund, faz a apologia da sabotagem de estruturas de combustíveis fósseis como uma das peças possíveis —​ e necessárias —​ do puzzle que é preciso montar para desmantelar o sistema que está a alimentar as alterações climáticas.

Em Portugal, a 13 de Maio, mais de uma centena de activistas juntou-se à porta do Terminal de Gás Natural da REN, em Sines, para bloquear o funcionamento da instalação. Saíram ao final do dia sem nenhum incidente com a polícia. Noutros países, contudo, o clima de confrontação está a aquecer. Numa altura em que a repressão policial contra activistas climáticos começa a sentir-se até mesmo na Europa de direitos, os movimentos dividem-se entre baixar o tom, à semelhança do que fizeram os britânicos Extinction Rebellion (sobre os quais Malm tece considerações mais críticas no livro), ou aumentar a intensidade dos protestos perante a emergência climática.

Em entrevista ao Azul, o activista e investigador sueco nota que são precisas acções contundentes porque o rei vai nu: “Não podemos dizer que estamos numa transição ecológica, porque não está a haver uma mudança dos combustíveis fósseis para as energias renováveis”, avalia. “O business as usual continua a avançar em direcção ao abismo e as pessoas, pelo menos algumas, já não aguentam mais.”

Em How to Blow Up a Pipeline, argumenta que a acção directa contra infra-estruturas de combustíveis fósseis é uma forma eficaz e legítima de perturbar o sistema. Porquê?
A razão de haver muitas pessoas no movimento climático no Norte global a ponderar tácticas mais radicais é a mesma razão pela qual eu tive de seguir essa direcção. É o facto de as coisas continuarem na mesma. O business as usual é implacável. Não há sequer um abrandamento na expansão das infra-estruturas de combustíveis fósseis, antes pelo contrário, está a ganhar novamente velocidade após a incrível bonanza de lucros que a indústria de combustíveis fósseis teve nos últimos anos.

Estamos a assistir a uma aceleração da construção de gasodutos, da exploração de campos de petróleo e gás, da construção de infra-estruturas de gás fóssil por todo o mundo. O que significa que as tácticas que temos utilizado até agora claramente não têm sido suficientes e que precisamos de fazer algo mais. É por isso que os activistas do clima em toda a Europa, da Alemanha a Portugal, estão a experimentar novos tipos de tácticas.

No activismo português, sente-se que há um equilíbrio difícil entre o receio de criar resistências na população com acções vistas como extremas e o receio de que este pacifismo comprometa o impacto do que fazem. Como acha que o livro contribuiu para alimentar este debate dentro dos movimentos climáticos?
O livro foi publicado no preciso momento em que estas ideias estavam no ar, quando o movimento climático na Europa, após a onda de 2018 e 2019, e após o marasmo da pandemia, se perguntava: qual é o próximo passo? Quando a pandemia começou a abrandar, muitas pessoas estavam a discutir como escalar a acção. Claramente, o que tínhamos feito em 2018 e 2019 foi óptimo, mas não foi suficiente, porque o business as usual continua a ser tão poderoso como sempre. Então, o que é que fazemos agora?

Foi nesse momento que o meu livro apareceu. E, por vezes, quando escrevemos um livro, ele pode ser publicado no momento certo, no sentido em que as ideias já lá estavam. Talvez tenha servido como ponto de referência para alguns debates, mas estes debates estão enraizados na própria situação política que se caracteriza por um sistema que é tão persistente e tem uma inércia tão extrema que continua, apesar do sofrimento climático a que assistimos e da ciência climática. Esse business as usual continua a avançar em direcção ao abismo e as pessoas, pelo menos algumas, já não aguentam mais. É isso que está na origem dos processos de radicalização.

Há então lugar para a sabotagem no espectro mais consensual das formas de participação cívica democrática?
Depende de como se define desobediência civil. Algumas pessoas têm uma concepção ampla de desobediência civil e incluem nela vários tipos de sabotagem. Mas, por norma, para o movimento climático, a desobediência civil não tem que ver com sabotagem. É como uma linha que foi traçada historicamente, em que estamos preparados para interromper o trânsito ou bloquear a entrada de cimeiras e reuniões de accionistas, mas não estamos preparados para destruir propriedade. Essa tem sido a posição habitual. Depois há grupos... Algumas pessoas em movimentos como o Just Stop Oil [das duas activistas que atiraram sopa contra o vidro que protegia os Girassóis de Van Gogh] diriam que alguns tipos de sabotagem se enquadram na rubrica da desobediência civil. Há até quem diga que partir coisas pode fazer parte da não-violência cristã. Pessoas diferentes têm definições diferentes destas coisas.

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Acção do grupo Just Stop Oil em Outubro de 2022 contra uma pintura de Van Gogh JUST STOP OIL HANDOUT/EPA

No livro, recorda que a violência esteve presente na história de outros movimentos sociais, como as sufragistas no Reino Unido ou o movimento pelos direitos civis nos EUA. Mas esses casos parecem diferentes, a violência era mais visível, o que legitimava de certa forma aquelas respostas violentas. O que é preciso para tornar mais visível a violência inerente a esse “capitalismo fóssil”?
É uma boa questão. O grande problema é que as maiores vítimas da violência das alterações climáticas — quando morrem pessoas nas monções no Paquistão ou devido a um furacão em Moçambique —​ tendem a estar distantes do local onde a violência tem origem. Estamos a falar de violência que vem daquilo que as grandes empresas de combustíveis fósseis estão a fazer, que é mediada pela atmosfera. Não estou muito certo de que o movimento climático tenha encontrado uma solução para abrir os olhos das pessoas para esta violência.

No entanto, também na Europa está a aproximar-se da vida das pessoas, por exemplo, com as terríveis inundações que ocorreram em Itália, ou a situação de seca e escassez de água em Espanha — suponho que em Portugal a situação seja semelhante. As pessoas estão a ver a destruição, ou deveriam estar a ver —​ enfim, a capacidade das pessoas de não verem o que está à sua frente é bastante impressionante —​, mas pelo menos algumas pessoas estão a ver que a destruição está a aproximar-se de casa, mesmo no Norte global.

Isso vai ser suficiente? Para muitas pessoas, sabotagem de propriedade privada ou mesmo desobediência civil são vistas como ir demasiado longe, a tal “fetichização da não-violência” que diz existir no movimento ambientalista.
É importante reconhecer que estamos a assistir no Norte global a uma intensificação da repressão violenta do movimento climático. Nos EUA, um activista climático, Manuel Paez Terán, foi executado pela polícia com 57 balas numa manifestação do movimento Stop Cop City, nos arredores de Atlanta. Em França, a repressão do movimento contra a construção de uma megabacia em Sainte-Soline chegou a um ponto em que um camarada ficou gravemente ferido nos confrontos de 25 de Março. O Serge ainda está em coma e não sabemos se vai sobreviver.

A repressão legal e ataques mais ou menos brutais a activistas do clima também se intensificaram na Alemanha, no Reino Unido, até mesmo na Suécia, onde não temos um movimento climático robusto, mas temos a extrema-direita no Governo. Tanto no caso de França como dos EUA, o nível de violência policial é um indicador do sucesso destes movimentos em desafiar os interesses instalados e articular preocupações do clima e da ecologia com outros problemas sociais, como o racismo e as questões de classe. Estes dois movimentos são realmente inspiradores, no sentido de trazerem uma verdadeira substância social à luta climática. E em ambos os casos assistimos a uma resposta feroz dos aparelhos repressivos do Estado.

Seria ir demasiado longe dizer que a violência é uma resposta legítima? Por exemplo, em Concerning Violence, baseado no ensaio de Frantz Fanon, há um argumento muito forte sobre as lutas da descolonização de que a violência foi uma resposta legítima, enquanto reacção à violência colonial. Quais são as questões éticas de situações destas? São comparáveis?
A violência teorizada por Frantz Fanon foi a violência no contexto da libertação da ocupação colonial. Isto é diferente da crise climática porque a crise climática não tem que ver com a ocupação militar de territórios e comunidades que têm de lutar para se libertarem. O aquecimento global funciona através de máquinas que extraem combustíveis fósseis e os queimam. Isso não é uma forma de violência armada por si só, é algo diferente de, digamos, as Forças de Defesa Israelitas invadirem o campo de refugiados de Jenin. Ou seja, é preciso calibrar as tácticas de acordo com o problema com que se está a lidar.

Sou totalmente a favor e solidário com a resistência armada como legítima na luta contra a ocupação colonial, incluindo na actual Palestina, mas esta não é a situação com que estamos a lidar quando lutamos contra o aquecimento global. Há semelhanças, claro. Por exemplo, em Moçambique, neste momento, na província de Cabo Delgado, temos uma situação quase colonial em que a Total [petrolífera francesa] está a governar essa província.

E há muitos outros casos em todo o mundo em que a extracção de petróleo e gás, e também de carvão, está ligada à violência colonial sob diferentes formas. Mesmo no Norte global, no Canadá, por exemplo, a construção de gasodutos é parte da agressão constante contra as Primeiras Nações nesse país. Mas em geral, na Europa, a luta é muito diferente da luta que os palestinianos estão a travar contra a ocupação israelita, o que significa que, no nosso caso, seria uma ideia muito má a violência física contra as pessoas. Por exemplo, fazer ataques armados a empresas de petróleo e gás, às sedes ou às suas reuniões anuais de accionistas ou assassinar os directores executivos dessas empresas seria desastroso por muitas razões. E também acho que isso é claro para o movimento. Não conheço ninguém que esteja a defender isso.

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Activista do grupo Extinction Rebellion com o livro How to Blow Up a Pipeline, durante um protesto contra as empresas de combustíveis fósseis em Haia, Países Baixos, no qual uma estrada foi bloqueada Michel Porro/Getty Images

No livro, a questão da violência contra pessoas está demarcada dos questionamentos que faz à “santidade da propriedade privada”. Como responde às acusações de “ecoterrorismo”? Sente que o termo continua a ser usado para retirar legitimidade à perspectiva que defende?
Bem, o conceito de ecoterrorismo é estranho. O termo terrorismo significa o assassínio indiscriminado de civis para fins políticos. E isto é uma coisa real, o 11 de Setembro e o ataque no Bataclan em Paris em 2015 foram ataques terroristas. Mas ninguém no movimento climático alguma vez matou pessoas, nem se defende isso. Quando falamos de sabotagem e de destruição de propriedade, é algo diferente de terrorismo. Pode, quando muito, ser classificado como vandalismo, porque está a destruir bens, mas eles são potencialmente destrutivos, como um gasoduto, um SUV, um superiate, coisas deste género. É preciso que as pessoas sejam mortas ou feridas de maneira indiscriminada para que o termo se aplique.

O que é fascinante quando se fala de ecoterrorismo é que as únicas mortes que estão a acontecer são causadas pelas empresas de combustíveis fósseis. Sabemos, de acordo com a ciência climática, que retirar os combustíveis fósseis do solo e queimá-los tem como consequência a morte de pessoas, mesmo que essas pessoas estejam longe de nós. Não vou ao ponto de dizer que devemos classificar as grandes empresas de combustíveis fósseis —​ Repsol, ENI, Total, BP e todas as outras —​ como entidades terroristas porque estão a matar pessoas, porque esse não é o seu objectivo. O seu objectivo principal é ter lucro, é fazer dinheiro. É por isso que estão a fazer isto, não estão a matar pessoas para fins políticos. Mas estão muito mais perto de preencher a definição de terrorismo do que nós, porque não estamos a fazer mal a ninguém. O que estamos a tentar fazer é acabar com as fontes de destruição e de morte.

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Andreas Malm DR

No livro Fossil Capital (2016), com base no seu trabalho académico, descreve que houve um momento de escolha, durante o processo industrial, quando decidimos passar da energia da água para a do vapor. No fundo, houve uma escolha deliberada pela opção mais destrutiva. Neste momento estamos a meio de uma “transição ecológica” focada na mitigação das emissões de CO2, mas esquecendo questões relacionadas com o solo, a biodiversidade e até mesmo emissões de outros gases. Estas duas escolhas, separadas por séculos, são comparáveis?
É comparável, sim. A semelhança entre esta situação e a que descrevo em Fossil Capital é que os combustíveis fósseis são mais caros e a fonte renovável alternativa —​ na altura era a energia hídrica, hoje é a energia solar e eólica —​ é mais barata. E mesmo assim, os combustíveis fósseis venceram. Não podemos dizer que estamos numa transição ecológica, porque não está a haver uma mudança dos combustíveis fósseis para as energias renováveis. Há um aumento das energias renováveis em todo o mundo, mas está a acontecer para além dos combustíveis fósseis. É um acréscimo de energia, não uma transição.

E a razão fundamental pela qual a transição não está a acontecer é que as empresas de energia lucram muito mais com os combustíveis fósseis do que com a energia solar e eólica. São tão baratas que é muito difícil lucrar com elas. Já no caso do petróleo e do gás, vimos claramente nos últimos dois anos, desde o fim da pandemia e ainda mais desde o início da guerra na Ucrânia, que os combustíveis fósseis permitem lucros enormes, em grande parte graças ao seu preço elevado. Estas empresas, que obtêm lucros tão grandes como os que estão a obter actualmente com os combustíveis fósseis, estão a investir ainda mais na sua produção e a afastar-se das energias renováveis.

Bruxelas acolheu recentemente a conferência Beyond Growth para debater respostas de decrescimento, pós-crescimento e outras propostas “além do PIB”. Estas soluções parecem viáveis, se forem integradas no sistema? Ou precisamos de uma revolução?
Não creio que seja preciso fazer primeiro uma revolução e só depois resolver a crise climática, porque uma revolução é algo incrivelmente difícil de concretizar. E talvez seja mais difícil do que nunca nos nossos países, porque estamos muito longe de qualquer tipo de dinâmica política revolucionária. Temos de conseguir fazer alguma coisa dentro do sistema existente. O problema é que qualquer tipo de acção climática significativa esbarra em interesses poderosos. Por exemplo, uma exigência que não é de todo revolucionária ou extremista, que vem de instituições do sistema como a Agência Internacional de Energia, é que não podemos ter novas instalações de combustíveis fósseis, nenhum novo gasoduto, central eléctrica a carvão ou furos de petróleo.

Esta exigência, que é muito básica, esbarra em interesses tão poderosos no sistema que é muito difícil de implementar sem enfrentar interesses que vão desde os grandes bancos como JP Morgan ou os gestores de activos como BlackRock, que continuam a despejar dinheiro nestes projectos, até, claro, as grandes empresas de petróleo e gás, que são muito poderosas. E não temos nenhuma luta revolucionária a acontecer ou nenhum movimento capaz de desafiar a ordem existente e de ameaçar seriamente o statu quo. Por outro lado, a escala do problema é tal que precisamos desse tipo de mudança. Precisamos de mudar a forma como as nossas sociedades funcionam, mas as forças sociais que outrora foram capazes de desafiar as classes dominantes estão enfraquecidas. É este o dilema que torna a luta pelo clima tão difícil.

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