Próxima crise no país vai ser a da água e afectará mais Algarve e Alentejo, diz investigador

Nuno Loureiro defende que “as reservas que temos já não nos garantem um ano [de consumo], ou garantem com muitas limitações”. O investigador diz que é necessário um maior planeamento e fiscalização.

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A água armazenada superficialmente na região desceu de 91,8 milhões de metros cúbicos para 66,6 milhões de metros cúbicos Rui Gaudencio

O sul de Portugal está a ser cada vez mais afectado pela seca e, se não chover este ano, o país vai-se debater com uma "crise da água", sobretudo no Algarve e no Alentejo, afirmou o investigador Nuno Loureiro.

"Por um lado temos a crise na saúde, que enche os noticiários no dia-a-dia, é dramática e é uma crise de falta de planeamento. Temos a crise da habitação, que agora está um pouco menos falada porque estamos ocupados com o que se passa na Palestina e na Faixa de Gaza, e vamos ter a muito curto prazo a crise da água", afirmou o investigador da Universidade do Algarve (UAlg).

Nuno Loureiro advertiu que, se este ano hidrológico não for "generoso", no próximo ano, a crise da água "vai estoirar à força toda" e afectar especialmente os territórios do Alentejo e Algarve.

"As reservas que temos já não nos garantem um ano [de consumo], ou garantem com muitas limitações. E perante esta situação não há respostas fáceis, não há soluções fáceis, mas há soluções que têm de ser adoptadas e que passam por um planeamento e uma fiscalização séria", defendeu.

A mesma fonte reconheceu que, entre as áreas de actuação para tornar o consumo de água mais sustentável, está o consumo doméstico e esse "gere-se pelo preço, não se gere com campanhas cor-de-rosa", de publicidade.

O investigador, que conta com estudos na área dos recursos hídricos, disse que a gestão faz-se também com "coisas completamente impensáveis no Algarve actual", como é, por exemplo, a "propagação de piscinas privadas", que classificou como um "absurdo" num cenário de escassez de água.

"Toda a gente tem uma piscina, uma piscina é um volume de água considerável (...) É um consumo de água privado, é um desperdício de água privado, que não traz contrapartidas absolutamente nenhumas", defendeu, frisando que se pode dizer que a "agricultura gasta muito ou gasta pouco, mas produz alimentos, produz emprego".

Nuno Loureiro apelou para um maior planeamento e fiscalização, através da utilização de ferramentas como, por exemplo, as imagens de satélite, que mostram um "acréscimo das áreas regadas no Algarve ao longo do tempo".

"Se for buscar imagens dos anos de 1980, vê-se como é pequena a mancha dos citrinos de Silves, vê-se como toda a zona a norte e a sul da [Estrada Nacional] 125 entre Tavira e Vila Real de Santo António é modesta. Nos anos recentes, se formos buscar imagens de 2018, 2020, 2022, vê-se que cada vez cresce mais e cada vez se rega mais", acrescentou.

Esta ferramenta permite "fiscalizar criteriosamente a utilização da água" e não está a ser utilizada pelos decisores técnicos e políticos de forma adequada, mas "tem de começar a ser", defendeu.

"Esta imagem de satélite permite, utilizando as diferentes bandas de imagem, caracterizar perfeitamente o estado hídrico da vegetação", acrescentou o investigador.

Pode ver-se, por exemplo, se uma vegetação "muito satisfeita de água está a ser regada" e essa informação pode cruzar-se com "as possíveis fontes de água, entre as quais os furos ilegais" ou "as barragens que não podem regar, mas continuam a regar ou as culturas continuam a ter água".

Nuno Loureiro considerou que estas ferramentas "têm de começar a ser utilizadas porque o assunto é muito sério" e, "mesmo que este inverno chova um bocadinho mais, pode atenuar um pouco a dor mas não é remédio" para o problema que a região se enfrenta.

Algarve está em processo de desertificação e recente chuva não resolve problema

Em declarações à Lusa, Nuno Loureiro explicou que a situação da região mostra quebras de pluviosidade e de reservas há já cerca de duas décadas e, mais do que episódios de seca, que se caracterizam por ser pontuais, o Algarve e o Alentejo encadeiam anos de fracas pluviosidades e estão já em desertificação.

O professor da Universidade do Algarve (UAlg) alertou que "desde o início do século, vai-se sempre percebendo que, paulatinamente, as reservas estão cada vez mais baixas", num processo que "assenta em grande medida no decréscimo da precipitação", ao qual acresce um cada vez maior consumo de água.

"Não estamos em episódios como os da seca. A seca é um episódio com um princípio e um fim, com um decréscimo de precipitação que se pode delimitar perfeitamente onde é que começou a chover abaixo da média, abaixo do normal, e quando é que acabou esse episódio. Nós o que temos é uma coisa que vai decrescendo regularmente e que não reverte", argumentou.

O investigador, que já realizou vários estudos sobre recursos hídricos, defendeu que, por esta razão, há um "processo de desertificação perfeitamente claro no Algarve, que bate certinho com todas as previsões e todos os modelos de mudança climática, de alterações climáticas".

Nuno Loureiro considerou que nada disto é "uma surpresa" e aproveitou para pedir aos decisores que adoptem "estratégias muito bem pensadas de mitigação e de busca de alternativas" e apostar numa maior fiscalização e planeamento.

"Estamos a ter alguma chuva no Algarve, e essa chuva começa a dar uma sensação de que os problemas se estão a resolver, mas objectivamente não se estão a resolver. Se compararmos - e falando nas reservas de superfície, ou seja, nas seis barragens do Algarve - o final de Setembro com o final de Outubro deste ano, tivemos um acréscimo de armazenamento de água útil que nem de 1% foi", afirmou.

O investigador da UAlg deu o exemplo do volume de água existente nas albufeiras algarvias no final de Setembro e no final de Outubro, que passou "de 64,5 milhões para 66,6 milhões [de metros cúbicos]", valor que "dá uma certa sensação de que as coisas melhoraram" mas que se "traduz em 0,6% do aumento das reservas de água útil".

Nuno Loureiro precisou que as barragens de Odeleite e Beliche, as duas existentes na sub-região do sotavento (este) "subiram um pouco, à volta de 3% das reservas", mas no barlavento (oeste) "Odelouca não mexeu" e as outras três barragens: Bravura, Funcho e Arade, decresceram.

"Isto demonstra que neste início do ano hidrológico 2023/2024 está a surgir o mesmo fenómeno que já aconteceu em anos anteriores: o sotavento consegue receber mais alguma precipitação, mas o barlavento não", observou.

A mesma fonte comparou ainda dados do final de Outubro passado com o período homólogo de 2022, afirmando que a água armazenada superficialmente na região desceu de 91,8 milhões de metros cúbicos para 66,6 milhões de metros cúbicos.

"Quer isto dizer que, no final de Outubro, comparando com o período homólogo do ano passado, temos menos 6,3% de reservas", acrescentou, sublinhando que as barragens do sotavento "estão melhor do que estavam em finais de Outubro do ano passado, mas as outras quatro estão piores".

A deterioração das reservas é também visível na barragem de Odelouca, que representa "um terço das reservas do Algarve" e onde a "quota actual da barragem, comparativamente com Janeiro de 2022, registou um "decréscimo de 15 metros de altura de água", uma descida que classificou como "assustadora" devido ao peso desta albufeira no total da água armazenada no Algarve.

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