Portugal “não tem estratégia para a água”, mas usa-a “à vontadinha”

Portugal possui uma comissão para a seca que se reuniu 13 vezes em seis anos. Em plena crise climática, especialistas defendem medidas estruturais (e não reactivas) de combate à escassez da água.

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Portugal tem de pensar na agricultura que tem e na que quer, pensar se quer continuar a cultivar o que tem cultivado,Portugal tem de pensar na agricultura que tem e na que quer, pensar se quer continuar a cultivar o que tem cultivado GettyImages,GettyImages

Portugal possui uma Comissão Permanente de Prevenção, Monitorização e Acompanhamento dos Efeitos da Seca que organizou 13 reuniões em seis anos. Face à seca extrema que o Sul do país atravessa, este grupo de decisores políticos reuniu-se há duas semanas e reagiu anunciando medidas como a proibição de novas estufas no Alentejo. Em tempos de crise climática, os especialistas ouvidos pelo PÚBLICO frisam que está na hora de medidas “estruturais” e não “reactivas” de combate à escassez da água.

“Comissões destas são criadas para resolver emergências. Quando as emergências passam a ser um novo normal, temos de fazer outra coisa, deve haver uma adaptação. Não podemos tratar emergências anuais como se fossem emergências que acontecem a cada década. A única certeza que temos é a de que vamos ter secas mais frequentes. Como tal, temos de ter planos de contingência para abastecimento público, temos de adoptar medidas estruturantes como a mudança de legislação e do preço da água”, defende Joaquim Poças Martins, professor da Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto (FEUP) e especialista em gestão hídrica.

Um ano de Azul, uma viagem pela costa

O Azul já fez um ano e para assinalar a data escolhemos um tema especial e oferecemos uma série de trabalhos dedicados à vida que encontramos nas cidades costeiras. O foco, claro, está em Portugal. A viagem pela costa portuguesa começou a 22 de Abril, Dia da Terra e data do nosso aniversário. 

Queremos que nos acompanhe nesta viagem pela costa portuguesa que será prolongada até ao dia 12 de Maio, data da conferência internacional Cidade Azul, que vai decorrer no Porto, com entrada gratuita mediante inscrição. Nos dias 11 e 12 de Maio, iremos estar no Pavilhão Rosa Mota para debater as cidades e o desafio da sustentabilidade ambiental, numa conferência internacional que junta cientistas, governantes e cidadãos preocupados em garantir o seu futuro. 

Veja aqui alguns dos trabalhos já publicados.

Francisco Ferreira, dirigente da associação ambientalista Zero, também defende “mudanças estruturais” que permitam ao país gerir estrategicamente a água. “Não devíamos ter comissões, devíamos ter um plano eficiente para uso da água. Caso contrário, temos estas comissões ad aeternum”, diz o professor do Departamento de Ciências e Engenharia do Ambiente da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa.

O presidente da Zero recorda que, no século XXI, em plena crise climática, Portugal “não tem uma estratégia para a água”. “Tínhamos um plano [o Programa Nacional para o Uso Eficiente da Água (PNUEA)] que deveria estar em vigor entre 2012 e 2020, mas que foi abandonado a partir de 2015. Desde então, estamos um pouco a funcionar em função das necessidades, sem estratégia”, lamenta Francisco Ferreira numa conversa telefónica com o PÚBLICO.

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 80/2017, que prevê a criação da comissão, estipula que uma das funções do grupo de trabalho é precisamente a promoção da “implementação das medidas preconizadas pelo Programa para o Uso Eficiente da Água [PNUEA] que podem ser executadas de imediato e preparar as medidas a adoptar a médio e longo prazo, numa perspectiva de preparação para uma maior resiliência a eventos de seca”.

Contudo, como pode uma comissão zelar pela implantação de medidas de um documento que nem sequer está actualizado? O PNUEA disponível hoje estipula limites para o desperdício de água para cada sector especificamente para o período 2012-2020. Além de desactualizado, o programa criado em 2005 não pôde ainda ser avaliado quanto à sua eficácia. Os resultados oficiais deste programa de combate ao desperdício de água nunca chegaram a ser tornados públicos, continuando inexplicavelmente na gaveta, segundo o jornal Eco.

“É chegado o momento de aplicar, sem hesitações, as medidas previstas no PNUEA, cuja actualização, do seu Plano de Implementação 2012-2020, nunca foi colocada em prática”, recordava Rui Godinho, presidente do conselho directivo da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas, num artigo de opinião publicado em 2022.

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Estufa de morangos em Beja, Alentejo Nuno Ferreira Santos

Medidas reactivas ou estruturais?

A comissão da seca existe desde o dia 7 de Junho de 2017, um ano que foi marcado por uma seca “gravíssima”. Ficou óbvio então que eventos climáticos extremos seriam cada vez mais intensos e frequentes devido à mudança do clima e que, por isso, seria necessária a existência de uma comissão de carácter “permanente” que não tivesse uma função meramente “reactiva”. Esta comissão é constituída por membros do Governo responsáveis por diferentes áreas, incluindo o ambiente, a agricultura, as florestas e o desenvolvimento rural, além de várias outras entidades, consoante a gravidade da situação.

“A incerteza e imprevisibilidade da seca e dos seus impactos justificam que se dedique uma atenção permanente a este fenómeno e não apenas uma actuação reactiva a situações extremas”, lê-se no texto da resolução n.º 80/2017 publicada em Diário da República.

A geógrafa Maria José Roxo, professora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, acredita que, nos últimos anos, os decisores políticos limitaram-se a reagir. “Não podemos estar sistematicamente a reagir. Precisamos de uma estratégia. Choca-me ter este tipo de comissões e depois não ver nada no terreno. Sou uma geógrafa de campo, isto custa-me muito”, confessa a investigadora numa conversa telefónica com o PÚBLICO.

A mais recente reunião da comissão para a seca realizou-se no dia 21 de Abril, tendo sido o primeiro encontro de 2023. Após o encontro, os ministérios do Ambiente e da Agricultura anunciaram a manutenção de medidas para poupar água, anunciando outras como suspensão de novas estufas no Sudoeste alentejano e a interdição do uso da água para a rega nalguns pontos do país onde há défice hídrico.

São medidas que respondem à seca prolongada que o Sul do país testemunha? “É óbvio que não são medidas suficientes”, avalia Maria José Roxo. Para a geógrafa, esta questão da água “tem de ser um assunto contínuo”. “Aquilo que conhecemos do ponto de vista científico é que isto constitui uma realidade para continuar. Não se podem interromper as campanhas [de sensibilização], temos de melhorar as infra-estruturas de regadio, combater os desperdícios nas redes. Não podemos estar sempre a reagir”, reforça.

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JOSE MANUEL GUIJARRO/GettyImages

Joaquim Poças Martins, por sua vez, recorda que, como estamos diante de um fenómeno global de mudança do clima, temos de nos “preparar para um novo normal”. E o que é essa nova normalidade? “São períodos de seca que se arrastam, um ano seco depois de outro. Praticamente estamos desde 2017 a enfrentar a seca”, diz o especialista em gestão hídrica, para quem uma comissão dedicada à seca acabaria por ser “um trabalho a tempo inteiro”. “Quase até poderíamos criar o Ministério da Seca”, refere o docente da FEUP.

Os dados do mais recente Relatório de Monitorização Agro-meteorológica e Hidrológica, feito pelo grupo de trabalho que presta assessoria técnica à comissão, sublinham “casos críticos no país”, como a barragem de Bravura (Aproveitamento Hidroagrícola do Alvor) e do Arade (Aproveitamento Hidroagrícola de Silves, Lagoa e Portimão). Na primeira, as reservas de águas estão destinadas “exclusivamente para abastecimento público”, o que compromete “irremediavelmente” o sector agrícola. Já no Arade, é compulsória a adopção do plano de contingência para situações de seca.

Que caminhos a seguir?

Não fazendo o elogio de medidas reactivas, que estratégias preconizam então os especialistas? Poças Martins explica que as soluções precisam de ser estudadas, e também que é preciso ver como outros países gerem a pouca água que têm. Há exemplos de nações mais prósperas do que Portugal, mas com menos recursos hidrológicos, garante o especialista. O segredo está na gestão da água: adopção de sistemas de rega gota a gota, por exemplo, ou a introdução de taxas moderadoras de consumo.

“Vejamos o caso de Israel: é um país mais seco do que o nosso, mas que não está a sofrer com falta de água. E os agricultores em Israel ganham mais dinheiro do que os portugueses. Não foi sempre assim. Nos anos 90, na sequência de problemas graves, adoptaram uma série de políticas públicas, incluindo a nacionalização da água. A água em Israel pertence ao Estado – quem capta a água tem de medir [o consumo] e pagar. Em Portugal, [água para a agricultura] quase não se mede nem se paga”, explica Joaquim Poças Martins.

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A água dos poços em Portugal custa zero GettyImages

O especialista em gestão hídrica refere que usamos a água subterrânea “à vontadinha” – e que, em bom rigor, não devia ser assim, deveriam ter uma licença, “mas a maioria não tem e, mesmo com licença, não paga”. Como a água para fins agrícolas em Portugal é “quase de graça”, argumenta Poças Martins, os agricultores não têm incentivos para poupar água. É na agricultura que temos de prestar atenção quando falamos de recursos hídricos, pois é também no sector onde se verifica uma gigantesca fatia do consumo.

“A água dos poços aqui custa zero e lá 60 cêntimos por metro cúbico. Israel reutiliza toda a água residual e paga ainda 30 cêntimos o metro cúbico. Em Portugal, a reutilização de água residual é quase zero porque o agricultor tem água no poço. Desperdiçamos um volume de águas residuais, distribuído ao longo do país, que equivale a uma barragem inteira do Alqueva. Isto permitiria ter muito menos escassez, mas não estamos a usar – são recursos que vão parar ao mar”, lamenta Poças Martins.

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Albufeira da barragaem de abastecimento de água a Braganca, Barragem da serra serrada Nelson Garrido

Barragens cheias de sedimentos

A água que desperdiçamos todos os dias também desespera Maria José Roxo. A geógrafa não compreende como os decisores não aproveitaram o período de seca para remover os sedimentos das albufeiras, permitindo assim que as barragens armazenassem uma maior quantidade da água que caiu do céu no fim de 2022 e no início de 2023.

“A preservação da água tem muito a ver com a preservação do recurso solo. Preciso de solo para ter água potável e preciso de ter cobertura do solo para ter boa água nas barragens. O que aconteceu com as grandes chuvadas de Dezembro, e do início de Janeiro, foram águas que levaram toneladas de sedimentos para as barragens, colmatando-as. Estas barragens deveriam ter sido limpas. Perdemos uma oportunidade única de remover estes sedimentos. Essa água toda foi desperdiçada”, afirma Maria José Roxo.

Outro caminho que os especialistas consideram premente é o que passa por repensar as culturas que queremos ter no país e, fazendo contas, definir os grandes investimentos em que queremos apostar. Desejamos mais barragens? Queremos construir unidades de dessalinização? Para servir quais culturas? E a que custo ambiental? Tudo isso tem de ser ponderado em função de uma aposta estratégica.

“Sabemos quais são as nossas prioridades, mas temos de planificar os investimentos. Se eu for para uma determinada cultura que consome demasiada água, tenho de pensar se compensa o investimento no regadio, por exemplo – há um limite para a subsidiação. Precisamos não só de sentar e analisar o custo e o benefício em relação às opções tomadas, mas também apostar fortemente numa maior eficiência hídrica”, alerta Francisco Ferreira.

Para o ambientalista, a construção de unidades de dessalinização – como a que foi anunciada para o litoral alentejano – deve ser vista como “um investimento de último recurso”. Já Poças Martins pensa que a criação de novas barragens – hipótese admitida pela tutela do ambiente e da acção climática – deve ser encarada com igual cautela, seja pelo custo, seja pelo impacto ambiental.

“Portugal tem de pensar na agricultura que tem e na que quer, pensar se quer continuar a cultivar o que tem cultivado, como tem cultivado. Há agricultores que pedem mais barragens, ou que se traga água do Norte para o Sul, do ponto de vista económico e ambiental não funciona. Não faz qualquer sentido fazer um transvase do Norte para o Sul [a chamada auto-estrada da água], no meu ponto de vista. Quanto às barragens, é preciso ver quem as paga. Já temos bastantes barragens. Acho mais sensato primeiro usar bem a água que temos e depois pensar como conseguimos mais”, conclui o professor da Faculdade de Engenharia do Porto.