Os livros em segunda vida

De facto, à conta do nosso hedonismo, aliviamos a agenda do planeta, que fica a ganhar. E nós também ganhamos, assim como as nossas estantes, que ganham novos velhos livros.

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Megafone P3: Os livros em segunda vida George Sharvashidze/Pexels
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Está amarelado. Não sabemos de que ano é. Só podemos ter uma ideia. Encontra-se naquele estado em que tanto pode ter 10 ou 25 anos. Nota-se que foi minimamente bem tratado, mas quem o vê percebe que foi preterido, porém, não está abandonado.

Ao seu lado, encontram-se outros tantos de dimensões e propriedades diferentes. Há uns em pior condição. Este está de muito boa saúde, pois ainda vive, mas parece tristonho e, se calhar, até está, porque não sente o toque humano há demasiado tempo. Ele só quer que a próxima mão o leve para a vida seguinte. É um livro em segunda mão.

Talvez sejamos nós o seu salvador. Se o autor ou a história nos interessar, pode ser que o levemos para casa, mas temos tendência para ser criteriosos. Não podemos salvar todos os livros em segunda mão. Podemos, sim, salvar quatro ou cinco de cada vez que entramos num alfarrabista. Mais do que isso é gulodice. Se tivéssemos mais mãos do que livros que queremos ler, seria mais fácil transportá-los e suportar o seu peso. Contentemo-nos com aquilo que temos, que já é bom. Também sabemos há algum tempo que temos menos anos de vida do que livros que queremos ler. É uma causa que está perdida desde o início.

Não sei até que ponto é que nos interessamos pela economia circular e por correntes sustentáveis. É certo que sabemos o impacto que a compra de livros em segunda mão tem na conservação da natureza, mas tenho receio de que liguemos mais ao prazer pessoal de estar dentro destas nobres livrarias e de sentir o cheiro a velho: uma mistura de felicidade, mofo e pó.

Podemos ser egoístas, mas não somos más pessoas. De facto, à conta do nosso hedonismo, aliviamos a agenda do planeta, que fica a ganhar. E nós também ganhamos, assim como as nossas estantes, que ganham novos velhos livros. Abatem-se menos árvores. Lêem-se mais livros.

Percorremos os alfarrabistas e as feiras do livro em segunda mão das nossas cidades (e das dos outros!), porque somos curiosos e porque sabemos que um livro usado é um livro vivido. Por ter sido lido por um número indeterminado de pessoas antes de nós, o livro em segunda mão reúne, dentro de si, um número indeterminado de vidas.

Não temos como calcular quantos cigarros foram fumados na sua companhia, nem quantos dedos folhearam as suas páginas. Imaginamos a identidade das pessoas que o leram antes de nós e tentamos adivinhar o ano em que o leram; por que razão o leram; se gostaram dele e se o recomendaram a alguém.

O livro amarelado, bem paciente, espera pelo nosso comando. Entretanto, escolhemo-lo. Hoje, é só aquele. Em breve, faremos parte do lote de pessoas que leram e viveram o livro, deixando um parte de si no seu interior. A decisão é fácil e o preço, baratinho. Levamo-lo para casa, porque gostamos de ler, claro, mas, acima de tudo, porque gostamos de histórias. Gostamos tanto de histórias que procuramos histórias dentro de histórias e vidas dentro de livros.

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