O escritor norueguês Jon Fosse é o Prémio Nobel da Literatura 2023

O poeta, dramaturgo e romancista, autor do magnum opus Septologia, aparecia sempre nas listas de favoritos. A Academia Sueca premiou a sua obra “inovadora” que dá voz ao “indizível”.

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Jon Fosse é o Prémio Nobel da Literatura 2023 Enric Vives-Rubio/arquivo
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Jon Fosse é o vencedor do Prémio Nobel da Literatura 2023, anunciou a Academia Sueca na conferência de imprensa realizada esta quinta-feira em Estocolmo, e, como habitualmente, transmitida online. Rotineiro candidato ao galardão que acaba de receber, o poeta, dramaturgo e romancista norueguês de 64 anos foi distinguido “pelas suas peças de teatro e prosa inovadoras que dão voz ao indizível”, justificou o júri.

Nascido a 29 de Setembro de 1959 em Strandebarm, no Oeste da Noruega, vive actualmente numa residência honorária situada nas propriedades do Palácio Real de Oslo, bem como em Hainburg, na Áustria, e em Frekhaug, na Noruega. O escritor tem sido publicado em Portugal pela editora Cavalo de Ferro. Também estão disponíveis em português traduções de várias das suas peças, na colecção de teatro que a Cotovia, editora que encerrou a sua actividade em Novembro de 2020, mantinha em colaboração com a companhia Artistas Unidos.

É apologista de uma prosa lenta, com frases e sequências longas, ausência de pontos finais e quebra de regras no uso da vírgula. Mas, para ele, elas estão no sítio certo. Diz que o sente no corpo, sabe se é certo ou errado, tal como na peça em que usou a palavra “pausa” em vez de uma vírgula. Para criar pausas, recorre à repetição.

Do seu currículo fazem parte títulos como Trilogia (2014), Manhã e Noite (2015) e a recém-concluída Septologia (2009-2021). José Riço Direitinho, crítico literário do PÚBLICO para quem parece existir sempre uma certa tensão existencial nos textos de Fosse, descreve este último trabalho como “uma longa meditação sobre a natureza da arte, de Deus, da morte e da mundanidade da vida”.

“É difícil explicar tudo o que faço na minha escrita. Sinto que escrevo o melhor e da maneira mais verdadeira que consigo. Não tenho intenções nem pretendo divulgar mensagens. Cada texto que escrevo é como um pequeno universo com as suas próprias regras. Tenho de escutar estas regras enquanto escrevo, mas não as posso explicar”, disse o norueguês em 2019, quando esteve na Feira do Livro de Frankfurt, na Alemanha, a apresentar esta obra composta por sete volumes.

O longo romance foi escrito quase todo numa pequena cidade nos arredores de Viena, na Áustria, onde vive parte do tempo. Escreveu-o à noite. Contou em Frankfurt que começa às quatro da manhã e termina às 9h. Acredita que ter escrito o livro na Áustria lhe permitiu ter alguma distância em relação ao seu país e às suas experiências, embora continue a viver também na Noruega. “Não sei como é que isso me influenciou, mas sei que me influenciou.”

Entre a escrita para teatro e a 'prosa lenta'

Dono de uma obra multifacetada — os seus mais de 60 trabalhos publicados incluem romances, colecções de poesia, ensaios e livros para crianças —, Jon Fosse é um dos dramaturgos europeus mais encenados a nível mundial. A Artistas Unidos aponta, numa nota biográfica, que o nórdico começou na literatura, em 1983, com um romance intitulado Raudt, svart — quer dizer Vermelho, preto —​, e escreveu 15 livros (entre o romance, a poesia, o ensaio, a novela e a literatura infantil) antes de produzir o seu primeiro texto para teatro, em 1994.

Foi no final da década de 1990, refere o mesmo texto, que as suas peças começaram a circular. Seguiu-se um período de grande aclamação, em que Fosse recolheu uma série de galardões escandinavos. Em 2010, foi distinguido com o prestigiado Prémio Ibsen.​

Depois de um período em que o seu foco incidiu sobre a escrita teatral, o norueguês regressou à prosa, há uma década e meia. Numa outra conversa com o Ípsilon, esta em 2021, explicava: “Ao escrever teatro, preciso de muita intensidade. Há que criar um compromisso no texto, e, quando acabo, fico exausto durante meses. Escrever ficção, aquilo a que chamo ‘prosa lenta’, é quase o oposto de escrever para teatro. Posso estar durante muito tempo, páginas e páginas, à volta de um qualquer pormenor, as frases movem-se lentamente, tudo demora. Mas isto não se pode fazer numa peça de teatro, nem num poema. Quis viver uma vida mais calma, quando parei de escrever teatro. E a prosa permite-me isso. Escrever as 1300 páginas de Septologia deixou-me descontraído.”

​​“De certa maneira, sinto que escrever é perigoso, porque saímos de nós mesmos, e isso talvez aconteça quando estou a escrever melhor — ou seja, tenho de passar os meus limites, as minhas fronteiras. Mas para fazer isso tenho de me sentir seguro”, dizia o norueguês ao Ípsilon em Janeiro deste ano, a propósito de O Outro Nome, um dos volumes de Septologia.

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Capa de O eu é um outro Cavalo de Ferro

A sua obra encontra-se traduzida em mais de 40 línguas. É o quarto norueguês a vencer o Prémio Nobel da Literatura, depois de Bjørnstjerne Bjørnson (1903), Knut Hamsun (1920) e Sigrid Undset (1928).​ No próximo dia 6 de Novembro, será publicado em Portugal um novo livro do autor, O Eu é um Outro, também integrante de Septologia (são os volumes III a V).​

“A escrita de Jon Fosse toca nos [nossos] sentimentos mais profundos, ansiedades, inseguranças, questões de vida e morte, afirmou o poeta e crítico literário Anders Olsson, membro da Academia Sueca. “E não interessa se é drama, poesia ou prosa, é o mesmo tipo de apelo de um humanismo fundamental.”

“Estou extasiado, e um pouco assustado. Vejo esta distinção como um prémio à literatura que pretende, antes de tudo, ser literatura, sem outras considerações”, reagiu Fosse, citado pela agência Reuters. Esta agência de notícias lembra que o autor escreve na língua Nynorsk, uma das duas versões oficiais, e a “menos comum", do norueguês. “Conhecida como ‘novo norueguês’ e usada por apenas 10% da população, foi desenvolvida no século XIX com dialectos rurais na sua base, tornando-a uma alternativa ao uso dominante do dinamarquês, oriundo de uma ligação de 400 anos à Dinamarca.”

Fosse diz ver a sua distinção como um reconhecimento da língua Nynorsk, à qual deve o Nobel.​

Vencedores anteriores

No ano passado, a escritora francesa Annie Ernaux recebeu o Prémio Nobel da Literatura pelo conjunto da sua obra que inclui Os Anos (Livros do Brasil), que muitos consideram ser a sua obra-prima. Já o júri do Nobel definiu-a como “a primeira autobiografia colectiva” e o poeta Durs Grünbein classificou-a como um “épico sociológico” revolucionário sobre o Ocidente contemporâneo. A escritora tem a sua obra publicada pela Livros do Brasil, que já a editava antes mas tem vindo a editar todos os seus livros desde então.

Em 2021, o Nobel da Literatura foi atribuído ao escritor tanzaniano Abdulrazak Gurnah. Na altura, o escritor que nasceu e cresceu numa das ilhas de Zanzibar (uma região autónoma da Tanzânia), e que desde a década de 1960 vive em Inglaterra, só tinha uma obra publicada em Portugal — Junto ao Mar, editada em 2003 pela Difel, e candidata ao Prémio Booker. Depois do Nobel, a sua obra começou a ser traduzida pela Cavalo de Ferro, que além de ter reeditado Junto ao Mar já lançou Vidas Seguintes, Paraíso e O Desertor.

Há três anos, o Prémio Nobel da Literatura fora dado à poeta norte-americana Louise Glück, cuja obra passou a estar publicada em Portugal pela Relógio D’Água: Vita Nova, Uma Vida de Aldeia, Noite Virtuosa e Fiel, Meadowlands, Averno, Ararate e A Íris Selvagem, com traduções de Ana Luísa Amaral, Margarida Vale Gato, Inês Dias e Frederico Pedreira.

Anders Olsson, secretário-geral da Academia Sueca, clarificou em 2020 os critérios deste prémio, para o qual podem ser nomeados romancistas, mas também ensaístas ou até cientistas: “Pessoas que escrevam bem”, resumiu num vídeo de perguntas e respostas divulgado pela Academia no Twitter.

Todos os anos os cinco finalistas do prémio são escolhidos a partir de uma lista de autores indicados por entidades e academias literárias de vários países e ex-Prémios Nobel. Mas estes nomeados não sabem que o são: o processo é secreto. As propostas são habitualmente 350 por ano, depois os candidatos são reduzidos a uma lista de 20 semifinalistas pelo júri da Academia, mais tarde passam a cinco finalistas e a escolha final é feita sempre durante o mês de Outubro.

O importante para o júri é a “qualidade literária do autor”, que tem de se destacar por um talento que o faça brilhar entre os outros escritores, explicou a romancista Ellen Mattson, escolhida em 2021 para falar sobre as regras pelas quais a Academia Sueca se rege. Não há um limite de idade para se poder receber o Prémio Nobel da Literatura, mas Ellen Mattson lembrou que às vezes é preciso uma vida inteira para que um autor se consume como um escritor excelente, razão pela qual a maioria dos premiados tem mais de 30 ou 40 anos.

Menos eurocêntrico, menos masculino

A Academia Sueca é composta por 18 membros — sete deles nestas funções desde há quatro anos (em 2017 os estatutos do prémio foram actualizados pelo rei sueco) — que leram todas as obras dos candidatos finalistas, já que este é um prémio dado ao conjunto de obras. Para se ser o eleito, é preciso recolher pelo menos um voto a mais do que metade das indicações do júri.

Anders Olsson também já dissera que a academia quer tornar o prémio menos eurocêntrico (oito dos últimos dez premiados são europeus) e irá dar mais atenção à literatura escrita por mulheres (só 17 escritoras receberam o Nobel da Literatura, num total de 119 laureados).

Em 2016, quando foi atribuído a Bob Dylan, o Nobel da Literatura causou polémica por distinguir um autor não estritamente literário. Logo a seguir, ficou suspenso por um ano, na sequência de um escândalo sexual envolvendo o marido de uma escritora que integrara a Academia. Regressaria em dose dupla para ser entregue à polaca Olga Tokarckzuk, que recebeu o prémio relativo ao ano de 2018, e ao austríaco Peter Handke, premiado de 2019. E a polémica voltou a eclodir, devido ao seu apoio ao líder sérvio Slobodan Milosevic durante a Guerra dos Balcãs. Na altura, a academia defendeu-se dizendo que o escritor tinha sido escolhido unicamente pelo seu mérito literário. Na sessão de perguntas e respostas que está disponível na rede social X (antigo Twitter) do Prémio Nobel, Ellen Mattson reafirma que o júri nunca olha para a vida pessoal dos laureados ou para as suas características de personalidade.

O prémio, que neste ano terá o valor de 11 milhões de coroas suecas (quase um milhão de euros), é habitualmente entregue pelo rei da Suécia a 10 de Dezembro - Dia do Nobel - na Sala de Concertos de Estocolmo.

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