Postal de Ovar: o Cais da Tijosa

Um pesado manto de neblina cobria o céu e a ria, mascarando-os um do outro. “Hoje não há nascer do Sol bonito…”, pensei. Vesti-me e saí.

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"Muitas pessoas associam o sombrio e a neblina à dor, à melancolia e ao medo" João da Silva
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— Amanhã, o nascer do Sol é às 7h15. Não deixem de o filmar, é magnífico. Aqui, o nascer do Sol e o pôr do Sol são magníficos —, explicou-nos, com paixão, Fernando Tavares, baterista profissional e um dos proprietários (o outro é a mulher, Paula Guerreiro Sousa) da Tijosa Eco-House Camp, empreendimento turístico que se situa precisamente no Cais da Tijosa, entre os dois braços da ria de Aveiro que parecem querer abraçar Ovar.

Acordei às 6h30. Quase não entrava claridade no quarto. Atribuí a responsabilidade da escuridão à cor preta que compõe 99% da área (e mobiliário) da Suite Dino Alves, que o próprio desenhou (*). Salvo erro, são três os pequenos apontamentos em cores muito fortes (rosa, vermelho e amarelo). E há mais dois ou três pedaços de talha dourada em lugares estratégicos do quarto.

“É quase uma black box, é uma experiência diferente”, refere o designer na nota biográfica da suíte. Dino também projetou um dos quartos. “Decidi criar um branco e um preto, numa alusão ao yin e yang, também representado na piscina do projeto.” As mesas-de-cabeceira são a minha peça de mobiliário preferida: três pneus usados empilhados com um espelho redondo no topo. A explicação do autor: “Aproveitamento de materiais usados, desperdícios que iriam para o lixo, reutilização subvertida de objetos de um universo que nada tem a ver com o espaço onde foram aplicados.”

Nesta extremidade da ria de Aveiro não há pneus, nem carros nas estradas ou hordas de turistas nas margens. E até os barcos são poucos — desengane-se quem vier à procura de moliceiros. O que há com fartura é junco, arbustos e aves, muitas aves, aves de toda a espécie e feitio. Identifiquei cinco: pato, gaivota, águia, flamingo e garça-real. E mais não arrisco.

Corri a cortina. Um pesado manto de neblina cobria o céu e a ria, mascarando-os um do outro. “Hoje não há nascer do Sol bonito…”, pensei. Vesti-me e saí.

— Espere lá, João, mas o entusiasmo da véspera não foi por causa do nascer do Sol?! —, pergunta o intrigado leitor.

— Foi, mas onde é que escrevi que não gosto de amanheceres cinzentos, sombrios e neblinados?

Avancei para o cais por entre a neblina. O cenário: águas cinzentas, o coaxar das rãs, os gritos das gaivotas, pequenos pássaros de tonalidade azulada e patos. À medida que me aproximava da extremidade do cais, também eu me tornava parte daquela pintura sinfónica de mil cores e infinitos tons de silêncio.

“O enquadramento de uma escultura, o ângulo sob o qual ela é tomada, a iluminação estudada, sobretudo, acentuam quase sempre imperiosamente o que até então estava apenas sugerido. Além disso, a fotografia a preto e branco ‘aproxima’ os objetos que representa, por mais que sejam diferentes. Uma tapeçaria, uma miniatura, um quadro, uma escultura e um vitral medievais, objetos muito diferentes, uma vez reproduzidos na mesma página, tornam-se parentes”, escreveu André Malraux, em As Vozes do Silêncio.

Muitas pessoas associam o sombrio e a neblina à dor, à melancolia e ao medo. E é comum utilizar a expressão “cenário cinzento” como sinónimo de algo opressivo, sombrio e negativo. Eu vejo a neblina como aquilo que é: um fenómeno atmosférico. Belo, por sinal. Há um princípio clássico da pintura segundo o qual o contorno (não só como perímetro, mas também como conteúdo) é muito mais importante do que a cor. Sou um clássico.

Olhei em redor e deparei-me com uma teia de aranha estendida entre o bote atracado e o cais. Uma obra de arte de um virtuosismo comovente. Pendiam da teia algumas gotas de orvalho. A aranha ausentara-se. Estava distraído a observar quanto tempo demoravam as gotas a cair quando me senti aquecido e iluminado. Olhei para a direita. O elemento-surpresa do cenário revelava-se já mais de um palmo acima da linha do horizonte. Voltei a olhar para a teia para verificar o brilho das gotas. Mas o vento, que entretanto aumentara de intensidade, derrubara-as. Todavia, numa interseção de linhas, duas orgulhosas gotas cintilantes mantinham a guarda de honra à tecedeira, até então escondida na sombra.

A beleza da ilusão e do aleatório. Yin e yang, tudo se vê e se esconde, tudo nasce e desaparece, tudo se transforma, tudo se confunde. No diálogo que mantemos com o mundo, intromete-se sempre a nossa biblioteca de emoções, sentimentos, conhecimentos e imaginação.

O nascer do Sol no Cais da Tijosa é lindo, Fernando. Mesmo quando não se expõe. Regressarei no Inverno.


(*) Além de Dino Alves, outros criadores participaram na criação dos alojamentos da Tijosa Eco-House Camp. Nuno Gama, Alexandra Moura, Storytailors e Katty Xiomara desenharam, cada um, uma suíte e um quarto.
O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

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