O Caso do Cadáver Esquisito 21: “O sono dormente”, por José Alves Mendes

Últimos passos: “Ele queria sair de cena, esconder-se entre os bafos do tempo quente mas em laivos de coragem. Afinal, um cu virado para a Lua não implica forçosamente uma cabeça enterrada na areia”.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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Para mais de 15 dias que a Augusta lhe vivia na boca, como uma cárie. Samuel não tinha pingo de ideia da razão. Não a conhecia, muito menos de alguma vez ter dado de caras com a velha em mais nova. O seu pai, há muito defuntado na frugal ciumeira de Deus, dera-lhe por dicas a confusa saga de uma mulher à procura da sua própria viuvez, curvilínea só de espinha, numa pequena bossa que parecia calhar-lhe que nem ginjas mesmo que dela fizesse uma fruta podre e muito mal abençoada. Por mais decidida que fosse a passada da Augusta na calçada, não se livrava da celebridade de ter morto este, aquele e mais alguém. A comichice de Samuel começou quando lhe chegou por mensagem que a Augusta estava morta. Outra vez. Como se tivesse deixado em imortal, em mais nódoa que marca, a tarefa de cansar os vivos de tanto se falar da morte dela: “Fugidia e de marreca, é certinho que mesmo na cova o Diabo não lhe volta a pôr a vista em cima”, resmungou num sussurro enquanto se espreguiçava de arrepios.

Foi quando o Samuel acordou. Desabraçou a almofada e com a lentidão dos tansos tratou de se levantar do sofá. Era um domingo de manhã, igual aos sábados. No mercado vai para uma hora que esgotaram os grelos de nabo e os evangelistas tocam às campainhas dos prédios. Um domingo envergonhado de não ser útil. Mesmo assim, Samuel saiu à rua ainda a raspar as ramelas com a unha que se esqueceu de cortar e na primeira esquina choca de fuças com a Augusta. A velha olhava-o como a uma travessa de salgadinhos, a roupa desgrenhada dele a fingir-se de papel tintado de gordura. Eram olhos de engate. Samuel sabia ao menos soletrar a palavra, o que não era de descontentar:

— Aproveita hoje, filho, que eu não trouxe a dentadura — disse a Augusta com a boca encarquilhada como se tivesse de propósito bochechado lixívia como elixir enquanto em lascívia prometia os prazeres da carne ou pelo menos um par de beijos aprendidos de um aspirador ligado.

— Augusta?! — perguntou de pêlo eriçado. Ela esgravatou-lhe ao de leve a camisa no lugar do bolso que esconde o coração como se afagasse o papo de um gato. Era o engodo empalado no anzol: de vista presa na mão direita da velha, Samuel mal se deu conta de que a esquerda segurava uma faca de trinchar. Num zás, a Augusta furou-lhe o fígado sem parar de contorcer o cabo da arma como se vitimada de epilepsia. Ele caiu a arfar, prosaica figura de esquina à procura do grito que não lhe saía, de rabo apontado ao céu como o anal da história.

Foi quando o Samuel acordou, outra vez. Era um domingo quase igual aos outros. Os cães arqueavam as pernas nos passeios, e os donos, armados de saquinhos escuros de breu, recolhiam as caganitas aliviados de não lhes ter calhado levar a vaca à rua. Rua fora, uma bizarra fauna de gente esfarelava-se contra os dias úteis e a levar o glúten a sério. Ou os asteriscos. Samuel rumou a casa ainda zonzo dos clamores do sol, mas com uma ideia na carola: encontrar o gajo que inventou a morte e perguntar-lhe:

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Carlos Matos

— Então e em que andas a trabalhar agora?

A Augusta estava parada no meio da rua. Pareceu-lhe ouvi-la dizer:

— Até tu eras capaz de ser velhinho se não sofresses da alergia de viver. Estás condenado à cobardia, Samuel!

Ele queria sair de cena, esconder-se entre os bafos do tempo quente mas em laivos de coragem. Afinal, um cu virado para a Lua não implica forçosamente uma cabeça enterrada na areia. A mão direita da velha acenou-lhe com a precisão de um metrónomo. A esquerda sacou de um pedregulho e apontou à testa de Samuel. Acertou-lhe entre as vistas onde toda a virtude é nasal. Caiu a arfar, prosaica figura do meio da rua a caminho do lugar onde os ouvidos são cegos e os olhos são surdos. Viu a Augusta virar a esquina, depois a voltar ao canto do prédio e com o lenço negro que trazia à cabeça a limpar a faca de trinchar como se a embalasse. A velha estava à espera.

Foi quando o Samuel acordou, de uma vez por todas. Ergueu-se de um salto e logo caiu no sofá num ribombar de sornice. Indolente como um rei de cuecas, decidiu não fazer as malas e não rumar ao campo a vingar as suas duas mortes que a velha lhe oferecera como numa travessa de salgadinhos: “Se a Augusta está às portas da morte, há-de haver alguém que lhe queira bem, que lhe cuide dos hábitos e ature os vícios”, pensou. “Há-de haver alguém com mais jeito do que eu para a amparar, não vá na morte o azar não lhe calhar em sorte”, sussurrou ele como se a pompa literária o fizesse adormecer na quietude dos descansos. Era um domingo tal e qual os outros. Abraçou a almofada como um peluche gasto e sentiu uma azia de morte. Voltou a espreguiçar-se numa apatia desanimada: “Que diacho, se morrer outra vez hão-de encontrar-me pelo cheiro, entremeado no sofá.” E antes que de vez as pálpebras lhe caíssem nos olhos, Samuel fez-se ao sono crente de que ao despertar teria pelo menos o aspecto de um vivo. Ou de um cadáver esquisito.

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