O Caso do Cadáver Esquisito 20: “A insuportável leveza do ser”, por Luísa Salema

A viagem do Cadáver Esquisito aproxima-se do fim: “Estou a pagar por ter sido sempre um eterno insatisfeito, por ter tido a mania das grandezas e a arrogância de um Sherlock Holmes”.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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Entrego-me? Não me entrego? Estava a arrancar as pétalas do malmequer quando a terra tremeu, de certeza mais nervosa do que em 1755. Foram dois intermináveis, apocalípticos, minutos. Fumos densos, chamas incontroláveis, estrondos, gritos, silêncios, sangue derramado, corpos e almas emaranhados. Onde é que eu já vi isto? No Fox Crime? Na National Geographic? No Jornal da Noite? Pode ter sido uma birra da natureza, um míssil, um meteorito ou mesmo o demo. É isso, coisa do demo. Fui parar ao inferno. Ardeu tudo e a única certeza é a de que eu, alma perdida, sem saber nem como nem porquê, me escapuli daquele corpo e daquele lugar. Da perseguição maquiavélica. Do juízo final. Será que a Augusta também se finou?

Logo eu, que nunca quis ser incinerado. Contava que os fungos decompusessem naturalmente o meu corpinho, que a terra me reincorporasse, que a minha alma levitasse graciosamente para o céu. Esperava ser a estrela polar do meu amor maior, o amparo da viúva nas noites de angústia.

A Augusta sempre me quis puxar para a astrologia, dizia que tínhamos signos compatíveis, que estávamos ligados, abrindo muito os olhos sempre que repetia o verbo. Ou seria adjectivo? Eu fingia interesse em constelações familiares, mas familiar era apenas o perfume do seu pescoço, aquele sorriso meigo, o olhar que me despia, desdenhando horóscopos e esoterismos. Contentei-me com a quantidade astronómica de estrelas cadentes que vi de cada vez que batia com a cabeça nas paredes, até decidir corrigir a hipermetropia e passar a ser um charmoso, menos desastrado, caixa de óculos. Autocomiseração à parte, essa pinta de artista intelectual era irresistível. Só eu não me suportava. Nunca me suportei, nunca me reconheci ao espelho. Passei toda uma vida a questionar porque é que eu era eu, ensimesmado, rendido a uma filosofia barata e inútil, e nem na morte se fez luz. Que perda de tempo.

Agora tenho a sensação de ter engolido boa parte da Biblioteca Nacional, afinal não estou no inferno nem em nenhum cenário dantesco, mas preso numa jovem sequóia, que uma outra alma, sem dó nem piedade, abandonou. Desconfio que foi a rainha Isabel II que deu de frosques, não gostou do clima e conseguiu transferência para a Nova Zelândia. É agora um quivi, com hábitos nocturnos. E eu, sem qualquer poder de escolha, reencarnei neste tronco imponente. Vim parar a Sintra, graças a Deus, mais húmida do que a Califórnia. Estou farto de viagens. Socorro, digam-me que isto é um pesadelo. Copos a mais? Um feitiço?

Estranhei a metamorfose, pensei ter trincado um cogumelo dos mágicos, estar a viver mais uma experiência psicadélica, até ter entranhado a ideia de ser alto e espadaúdo, cheio de perspectiva e de vertigens, um monstro de sabedoria no país das maravilhas. Ando aqui em conversas com o micélio, esse gigantesco ser oculto, qual internet das árvores, a tentar perceber se a Augusta sobreviveu à catástrofe ou se será agora uma figueira, uma magnólia, qualquer delas mais terapêutica do que a minha espécie pernilonga. Ou não. Talvez esteja viva e inteira, talvez deva esperar a sua aparição em carne e osso, o seu abraço real. Um acto de amor verdadeiro, como no filme Frozen. Algo que me liberte de ser estátua, apesar de tudo o que lhe fiz, de tudo o que não cumpri.

Não tenho grande fé, cheira-me que vão ser séculos e séculos aqui de castigo, mudo e inquieto, forçosamente quieto, a cultivar a sabedoria do silêncio interno. Não sei ainda quem me semeou. Se um vento transatlântico, se algum espanhol que trouxe uns pezinhos de red woods das Américas. Só sei que estou aqui plantado, numa cada vez mais insustentável e insuportável leveza do ser. Eis-me homem no estado natureza, castigo por ter concordado demasiadas vezes com o Rousseau.

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Carlos Matos

Neste novo corpo de arranha-céus, tenho visão de coruja. Nada me escapa. O nascer do sol bate o do Evereste, isto quando não está tudo nublado, que é o pão nosso de cada dia. Estou mais perto da Lua, sou melhor do que qualquer câmara de videovigilância. Até às reuniões do clube Bilderberg vou assistir, vejo a Penha Longa. Pena não ter chegado a tempo da de Maio para saber se o planeta tem futuro. Para saber o meu amanhã. Conta-me tudo, micélio. Mereço este fim? Ou este recomeço? Talvez. Só pode ser um carma, seja lá isso o que for. A minha Augusta tinha toda a razão. Estou a pagar por ter sido sempre um eterno insatisfeito, por ter tido a mania das grandezas e a arrogância de um Sherlock Holmes, ainda que a mascarar uma timidez crónica.

A única vantagem do fenómeno é que me sinto útil, finalmente útil, um bom samaritano. É com este pensamento que combato os ataques de ansiedade. Dou oxigénio e sombra, filtro o ar e os sons, absorvo o choro dos céus, sou casa de muita bicharada, alguma dessa bicharada canta e encanta, enfim, só poesia, compaixão e cooperação, qualidades em vias de extinção. Este pacote devia fazer de mim uma alma feliz, não era? No mínimo félix, o latim é que tem sempre razão. Raios partam os chineses, os gregos e os romanos e mais a ditadura da felicidade. Não seríamos todos mais felizes sem esta utopia? Devíamos inverter a coisa, assumir logo à nascença que viver é uma filha da mãe de uma tormenta e aos poucos ir coleccionando momentos menos horripilantes para alegrar os dias e as noites. Como agora, que tenho um formigueiro a escalar o meu tronco e uma vontade incontrolável de rir à gargalhada, ao mesmo tempo que sinto um ódio crescente no sentido de as exterminar, esmagando-as com as minhas toneladas de madeira e de sabedoria. A origem do mal está nos insectos, sem dúvida.

Pensando bem, com tanto pirómano e motosserras, não devo ter grande futuro. Conhecem a farsa das espécies protegidas e a das alterações climáticas? E a dos condomínios de luxo? Ou volto a arder e viro pó, ou viro mesa, armário, cama, trave, papel. Oxalá vire livro, não um chat gpt.

Procura-me, Augusta. Por favor. Abraça o meu tronco. Perdoa-me, belisca-me, dá-me o comprimido azul. Não, não esse que estás a pensar, quero o comprimido azul do Matrix, regressar à vida normal. Por favor, quero voltar a estar iludido, à liberdade de nada saber, de nada encucar, de me render ao alinhamento dos astros e à fé na humanidade. Diz-me que estou a sonhar, que não vou viver a vida em looping, que isto não é um eterno retorno, que eterno é apenas o nosso amor.


A AUTORA: Luísa Salema
A autora não é autora. Nem jornalista. Nem coisa nenhuma. Já acha graça, porém, à nulidade que a define, sintoma de grande evolução na escola da vida. Não gosta muito de falar, prefere escrever. E fotografar, ainda que com a lente quase sempre embaciada de um telefone pré-histórico. Em tempos, depois de sonhar ser tudo e mais alguma coisa, entregou-se à Comunicação Social. Fez-lhe juras de amor eterno e atirou-se de cabeça para um casamento que, por mais estranho que pareça, durou meia dúzia de anos. Após um divórcio amigável, passou a viver com a cabeça nas nuvens. Ganhou asas, ordenado fixo, não mais parou de voar. Reproduziu-se três vezes, numa tentativa bem-sucedida de se fazer melhor. Três maravilhas da natureza que trouxe a este mundo, pelo que afinal a autora é autora, mas de obras de arte de carne e osso. Também já plantou árvores e tenta salvar mais algumas. Sofre de ecoansiedade desde que, aos 12 anos, arrancaram o pinheiro-manso do seu jardim. Falta-lhe o livro, que há-de escrever segundo o antigo acordo ortográfico, se até lá conseguir arrumar a casa e a cabeça. Para já, aproveita o ofício para se aperceber de outras realidades além-bairro, além-Portugal. Vai registando impressões, sem pressões editoriais. Sem agenda. Sem relógio. Gosta de deambular, de andar de bicicleta, de banhos de mar e de floresta, de se deixar levar por livros, mandalas e melodias.

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