O Caso do Cadáver Esquisito 19: “A pena na balança”, por Fátima Moura da Silva

A “novela” de mistério, surreal e com muitas viagens, escrita por 22 autores, avança: aqui até entrando pelos universos do sr. Scrooge e de Ziggy Stardust.

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O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos dr
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Não é que é ela?! Claro que tinha de a encontrar aqui, nas minhas deambulações, a matar por antecipação as saudades que vou ter desta cidade, mais ainda deste canto da cidade, conheço quase cada pedra e cada banco. Se calhar anda à procura da minha memória pelas ruas sujas do cais, gostava que me visse, mas aqueles olhos verdes de gato atravessam o espaço sem me enxergar. Nisso não parece um gato, que os felinos topam-me sempre e eriçam-se todos…

Tenho saudades tuas, Augusta, pela primeira vez na vida tenho saudades tuas! E é na morte que tenho saudades, nunca imaginei que depois de morto ia estar vivo para ter saudades tuas. Talvez este tipo lhe possa dizer, ele vê-me, não sei como, mas vê-me, às vezes conversamos, ele parece a réplica do meu corpo e até de mais que o meu corpo nos bons tempos, quando ainda não estava gasto pelo cais. Se calhar é por isso que ela quer fugir com ele. Também não está em bom estado, também tem andado a gastar o corpo e o coração por aqui, nestas ruas desgraçadas que nos prenderam aos dois, não um ao outro, mas às pedras da calçada torta e esburacada.

Vou deixá-los, que bem sei que há quem ande à minha procura e que me vai ver demasiado bem, não posso baixar a guarda.

A ver se não me vê! Já não sei quem é que me disse, tantos encontrei por aqui, todos a esconder-se… também me escondi, pudera, quem é que quer aquilo!

Já me basta ter de fazer-me de morto, passo a expressão, mas é muito aborrecido ter de me esconder neste corpo que já foi meu para fugir daquele fuinhas… frio que nem morto, lá vou eu outra vez, mas, enfim, frio, que é a única coisa que sinto. Felizmente perdi o olfacto, nem imagino o que seria, eu que sou tão esquisito com cheiros! Era, já sei que era, mas ainda sou, pelo menos lembro-me disso.

Mas a ver se não me vê a fazer-me de morto, a confundir-me com o corpo, ansioso por sair daqui! Os outros, que se meteram nos corpos de volta, a fugir dele, disseram isso, “faz-te de morto, ele vem pesar-te o coração e se for mais pesado que a pena do outro prato da balança estás lixado, não linchado, porque a balança dele só te lixaria, nunca permitiria que os outros te linchassem, não seria justo, que ele é de justiças”.

Já tinha ouvido falar, mas imaginava um ser angelical e aparece-me este tipo, vi-o ao fundo da álea desta aldeia de mármore e terra, tem ar de picuinhas, olhos fundos e nariz adunco, como é que o meu coração passaria na balança deste Ebenezer Scrooge, somítico e sôfrego pelas minhas falhas e pecados porque é de cismas e pequenino, dá logo para ver na cara enfiada dele, como é que o meu coração se vai safar?

Depois penso, também porque não haveria de me safar? É verdade que a memória se me tolda no frio deste corpo a desfazer-se e já só emprestado, mas ou saio e ele me apanha, ou espero até que se distraia e vá pesar o coração de outro. Ontem ouvi um rebuliço, há um recém-chegado, ele que se entretenha com novatos, já estou aqui há… há quanto tempo? Olha, não é que não me lembro?! Mas também… porque me pesaria tanto o coração? A mim, não, na balança dele, do picuinhas, como é que alguém compete com uma pena? Coisas de egípcios antigos, chamavam-lhe deusa, chamavam-lhe Maat, também me disseram. Eu sou moderno e as coisas pesam menos, ou pelo menos preocupamo-nos menos com o que pesa, a não ser que nos atrapalhe a vidinha, que coisa esta, morre-se-me o corpo e tenho de ir a pesagens!

Ai, se pesar as minhas trapaças! Foram só brincadeira, a Alice sabia que era a brincar, de certeza, não me levava a mal, ela sabia como eu era, percebia, foram anos disto, ela percebia, tal como a Augusta, também sabia, não era por mal, mas será que o Scrooge percebe ou tenho de chamá-las como testemunhas para dizer que eu era boa pessoa, só um bocado valdevinos, mas isso era coisa de homem, elas sabiam, mas aposto como o Ebenezer me vai descontar pontos, como na carta de condução.

Tenho em crer que elas viriam testemunhar, será que me atrevo a pôr a cabeça de fora e enfrentar o Mister Scrooge? Olha, se calhar até vou, elas vêm, elas estão sempre prontinhas a pôr a cabeça no cepo por mim, portanto… mas, ai, ainda havia a Cecília! Esta não punha a cabeça no cepo, era um cabo de trabalhos a Céci, como eu lhe chamava quando estava de feição, não de afeição, porque na realidade… ai, o melhor é baixar a cabeça, não olhes para mim Scrooge, olha para a álea seguinte.

Além disso, elas estão ainda no lado de lá, como poderiam testemunhar por mim? Estou sozinho, essa é que é essa, e nem sei o que diriam neste lado, sabendo que o coração delas também iria ser pesado, não poderiam mentir, nem arranjar desculpas por mim… nem por elas… que arranjaram tantas, só para eu não lhes pesar e fazer doer. Também falharam, sim, porque na balança do Scrooge tudo conta, disseram-me os outros.

Olha lá, Ebenezer, se visses como ofereci cigarros e copos! Até paguei um lanche a um tipo que de certeza não era tão português como a padaria onde o encontrei! Vês, Ebenezer, não conta? Até já vejo a pena a vacilar… ou a esvoaçar… Compensa, não?

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CARLOS MATOS

Mas a memória tolda-se-me cada vez mais, deve ser do frio, que já não aguento fingir-me de morto dentro deste corpo gelado. Agora já não sei bem… a ideia da Alice, da Augusta e da Cecília baralharam-me um bocado — como é isto possível? —, agora de repente pareceu que eu era as três, primeiro em separado, depois todas juntas! Ai, será que as amei ou só a mim mesmo? Ou nem isso, dou-me conta de que tinha um buraco insaciável no meio do peito e devorei-lhes o sopro vital para o encher, será por isso que agora também sou elas? Ai, tenho de sair daqui, o frio faz-me mal!

Valha-me Deus! Estou mesmo baralhado! O Ziggy Stardust aterrou na minha cabeça, ou o que eu pensava que era a minha cabeça, eu sou aquele que vos veio salvar ou amar, não sei se uma coisa é a outra ou a exclui, não só à Alice, à Augusta e à Cecília, mas também a uma larga fatia da humanidade, que todos sabemos é maioritariamente feminina, mas também é masculina, porque eu seduzo todos… ah pois… o Scrooge vai mesmo lixar-me e se calhar deixar que me linchem, não, ele não faria isso, ele só me vem pesar o coração e não consigo deitar fora o combustível antes da aterragem forçada. Foram vocês, agora o meu coração deveria pesar como uma pena! Culpa vossa, que não me perceberam! Ou será minha? Ou… e agora estou a cair da Graça para a Terra, sempre a esconder-me do Ebenezer, mas a culpa não é de ninguém. É a queda mas, se calhar, até poderia ser a ascensão de Stardust sem asas e sem ego, só pó de estrelas.

Mas tolda-se-me a memória cada vez mais, como vim aqui parar? Estou a olhar para este corpo, de onde saí e aonde voltei, a ver se encontro pistas, como é que me morreu o corpo? Eu que sempre acreditei que morria com o corpo, aqui estou a esconder-me dentro dele para fugir ao fuinhas que me quer pesar! Terei de lhe entregar a memória? Pois não, as recordações são minhas, ora… mas se estou aqui, a pensar sem corpo, também que história é esta? Depois lembro-me delas, terão sido elas? Sei que andavam irritadas, eu também ficaria, pensando bem, suguei-lhes o ar de dentro…Tenho aqui um galo na cabeça, será que me matou? Não a mim, ao meu corpo, que eu estou aqui vivinho, como se nota, só pensamento no éter, a voar, olha que bom que é andar no éter…

A vantagem é que oiço os pássaros, não consegui ser um, mas oiço-os assim que o sol chega, aliás, antes de chegar, faz-me lembrar quando vi a alvorada no Evereste a partir de Nagarkot, o sol começava a correr a escuridão descolando-a da montanha, foi como se visse o princípio da Criação, lento, mas inexorável, ao mesmo tempo, como se fosse uma página a desprender-se das encostas escuras ao ritmo do coração a bater devagar, esmagado perante tanta beleza, a luz a descobrir as trevas nas encostas alvas e brilhantes. E geladas… O que me lembra, tenho de me pôr daqui para fora!

E depois disto, como te posso entregar o meu coração, fuinhas? Só se voltares a ser o anjo que imaginei no lugar deste Ebenezer Scrooge. Vê la se encontras bondade…


A AUTORA: Fátima Moura da Silva
Nasceu quase, quase, em cima da linha que divide o Alto Alentejo e a Extremadura espanhola. Em pequena saltava de um lado para o outro a imaginar que estava nos dois lados ao mesmo tempo. E estava. Na altura, e naquele sítio, era possível.

Terá sido isso (ou então não, como vamos nós saber os princípios dos princípios?) que a fez andar sempre a saltitar para a frente e para trás nos limites, nas fronteiras, no desvendar do que está além do que os olhos vêem?

Mas foi isso sempre, uma apetência quase incontrolável por levantar véus, cruzar fronteiras, descobrir o que não é mostrado e ouvir o que não é dito. Se calhar levada por uma corrente de ar que a fez encalhar numa data de páginas que publicou recentemente sobre vento, filhas e mães, amores e desamores.

Talvez tenha sido esse desassossego que a atirou para o jornalismo, um caminho de 32 anos sem regresso agora, mas de que as memórias e a alma inquisidora permanecem. Sempre será assim. Não por vã curiosidade, mas por uma verdadeira paixão por ir até ao centro das coisas.

Houve sempre, também, a paixão pelas histórias, pelas palavras que as contam, que começou de uma maneira de que ninguém se lembra, tinha quatro anos. Passaram a fazer sentido no papel, nas páginas dos livros, e eram belíssimas; todas as histórias são belíssimas se as ouvirmos bem. Nunca deixou o amor pelos contos de fadas, pelo contrário, aprendeu que não eram apenas histórias para crianças, mas estavam, sim, carregadas de um simbolismo sobretudo compreendido pelo nosso inconsciente.

Enredou-se, quase logo, noutras histórias, nas das guerras, dos injustiçados, nas daqueles em que ser humano é não ser, em que é apenas algo por onde um olhar cego passeia de relance, sem ver.

Será, talvez, a paixão pelo desconhecido e pela compreensão das coisas que a levam constantemente para caminhos novos, sofregamente, para entender o que está além da linha do horizonte.

Misturou-se em duas línguas, tão próximas e ao mesmo tempo diferentes, cozinhou-se em duas culturas tão parecidas, mas de natureza tão distinta, ambas cálidas, mas também geladas em extremos sazonais. Será que isso desenha a nossa natureza?

Hoje? Mesmo já despida de tantas cascas e crenças que até pensava não existirem, mas existiam, ainda está a tentar chegar ao âmago. Há um fruto, qual é o nome do fruto? Não vem à memória, mas é um em que se tem de partir muitas camadas para chegar à semente. Será que o fruto existe ou é apenas uma ilustração imaginária de um conto?

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