O Caso do Cadáver Esquisito 9: “A chuva morna que encharca o Verão”, por Inês Queiroz

O 9.º episódio da “novela” escrita por 22 autores. Um “cadáver esquisito” que dá muitas voltas ao mundo. Aqui, anda pela Almirante Reis, em Lisboa. “Kyandas, quiandas… que andas? Que andas a fazer?”

Foto
O grafismo é de Jorge Barbosa e as aguarelas são de Carlos Matos DR dr
Ouça este artigo
00:00
07:54

O Caso do Cadáver Esquisito: Apresentação de uma experiência surreal, misteriosa e viajada com histórias de ficção diárias na Fugas

— Kyandas, Kyandas… Kyandas? Há séculos que andas aí e ainda não percebeste o que andas a fazer? E que estranha conversa para esta hora da manhã...

Não o disse exactamente, mas pensou-o. Ainda de olhos fechados, sentiu o amparo tranquilizador do travesseiro a aconchegar-lhe o pescoço. Há pelo menos duas semanas que estas Kyandas lhe invadiam as noites. Mais ou menos desde o dia em que alguém lhe deixara uma estranha caixa vazia à porta de casa. Chegavam de mansinho, lá pelo raiar da alvorada e desassossegavam-lhe o sono até ao início do despertar. A hora de todas epifanias, como costumava dizer a amiga Luísa, muito mais dada a esoterismos do que ela.

Ao princípio nem percebeu do que se tratava. Tropeçou-lhes na fonética e no grafismo.

— Kyandas? Quiandas? Que andas... a fazer?

Nada ali fazia sentido. Valeu-se da fundamental pesquisa que lhe falou de uma certa divindade aquática angolana. Valeu-se, mas, ainda assim, nada ali fazia sentido.

Levantou-se e foi até à cozinha. Com a porta do frigorífico aberta, deixou que o olhar se lhe perdesse no rótulo de um iogurte já fora do prazo de validade…

— Kyandas, quiandas… que andas? Que andas a fazer?

Decididamente sentia-se a enlouquecer. Voltou a pensar na caixa. A tal que chegara aparentemente vazia mas cuja abertura lhe viera povoar os sonhos com criaturas fantásticas e frases sibilinas. A Luísa dissera-lhe certa vez, há já muito tempo, que se algum dia abrisse a caixa de Pandora a chuva viria molhar o Verão. Na altura não entendera nada, mas a chuva chegara entretanto. Morna, pardacenta, persistente… a encharcar o Verão lisboeta. Que coisa irritante. Nunca fora uma pessoa supersticiosa, mas começava a sentir a sua razão posta em causa a cada curva do dia. E isto para não falar dos sonhos que lhe afligiam as noites e lhe empapavam os lençóis de delírios febris.

O duche tépido levou pelo ralo da banheira os últimos resquícios dos sobressaltos nocturnos e devolveu-lhe alguma lucidez.

— Vamos lá ver até quando... — rosnou entre dentes.

Fez-se à chuva. Desceu as escadinhas da Rua Cidade de Manchester a caminho do metro. A caminho da redacção. Um dia inteirinho dedicado às flutuações das bolsas internacionais serviria certamente para lhe exorcizar os demónios.

— Kyandas, quiandas, que andas...? Que bela confusão!

Entrou no café da Almirante Reis, escolheu uma mesa junto à janela e pediu o seu café habitual. Cheio, em chávena fria. Ficou a olhar a chuva que, lá fora, continuava a encharcar o Verão… morna, pardacenta, persistente.

— Kyandas, quiandas, que andas… Ai! Que andas mas é a fazer à tua pobre cabeça? — perguntou aos seus botões. Encolheu os ombros e dedicou-se afincadamente a mexer o café como se essa fosse a tarefa mais importante do mundo.

— Augusta!

Ergueu os olhos da chávena. Imóvel à sua frente, o homem parecia uma estátua de ébano.

— Augusta? — repetiu.

A voz era estranha. Como se reverberasse levemente. Sobressaltou-se e sacudiu a cabeça.

— Não! Não sou Augusta…

— És! — insistiu o homem.

— Já lhe disse que não sou. Chamo-me…

— Todas as pessoas como tu são augustas.

— Augustas?

— Sim. Divinas, sagradas, mágicas…

Foto
Carlos Matos

Olhou-o com curiosidade. De repente, parecia-lhe que aquela personagem peculiar tinha qualquer coisa de estranhamente familiar. Como se tivesse acabado de sair de entre as páginas de um romance lido há muito tempo… nem conseguia precisar qual.

— Porque diz isso? — atreveu-se a perguntar, meio a medo.

— Já devias saber. Abriste-a, não foi?

— Abri o quê?

— A caixa.

Sobressaltou-se mais uma vez.

— Como?... como pode saber isso?

O homem sorriu. Os dentes branquíssimos a oferecerem contraste ao ébano dos olhos e da pele.

— Posso sentar-me?

E sem esperar resposta ocupou a cadeira à sua frente e pegou-lhe na mão. Sentiu-lhe os dedos nodosos, a palma seca, áspera e quente contra a sua e deixou-se invadir por uma estranha sensação de conforto.

— É claro que abriste a caixa. A cor dos teus olhos mudou e a chuva veio por tua causa. Foste tu que a chamaste.

Quis perguntar, mas não se atreveu. Quis gritar, mas o som não saiu. Ele continuava a sorrir e a segurar-lhe na mão.

— Não deves perguntar. Há perguntas que devem ficar por fazer… sobretudo se já conheces a resposta…

— Mas esta chuva não pode ter nada a ver comigo. Eu detesto a chuva! Fujo dela como o diabo foge da cruz… — ouviu-se dizer como se estivesse a sonhar. Uma gargalhada sonora arrancou-a ao delírio infantil. Sentiu-se a pessoa mais idiota do mundo. Envergonhada, fechou os olhos e encostou a cabeça à janela. O vidro frio trouxe-lhe algum amparo.

— Kyandas, quiandas, que andas a fazer? — a frase ecoava repetidamente na sua cabeça como um leitmotiv desgovernado. Continuava a sentir a mão do homem na sua, os dedos nodosos, a palma seca, áspera e quente, mas quando abriu os olhos ele tinha-se eclipsado.

Chamou o empregado que estava atrás do balcão.

— Sabe para onde foi o senhor que ainda agora estava comigo? — perguntou.

— O senhor que estava consigo? Mas a senhora está sozinha desde que aqui chegou, há para aí meia hora…

Arrepiou-se. Sem mais hesitações pagou o café e saiu atordoada. Cá fora a chuva continuava a cair, morna, pardacenta, persistente. Entregou-se-lhe, deixou-se envolver, deixou-se encharcar. Do céu, um tímido raio de sol saltou por detrás de uma nuvem e veio cair-lhe aos pés… beijar-lhe os sapatos. Esqueceu o metro, esqueceu a redacção, esqueceu as flutuações das bolsas internacionais. Devagar, desceu a rua, virou à esquerda e caminhou em direcção ao rio.


A Autora: Inês Queiroz
Percebeu que tinha um certo jeito para multiplicar as letras ainda nos tempos em que a reguada e o puxão de orelhas regiam a afinação do coro das tabuadas em sala de aula. Calona por opção e estilo pessoal, surpreendeu-se no dia em a professora da velhinha quarta classe leu uma das suas redacções em voz alta ao resto da turma. Foi a primeira de muitas e também o despertar de um bichinho que nunca mais lhe deu paz. Ao estilo inconfundível de Enid Blyton, aprendeu a alongar-se nas descrições suculentas, inspirada pelas ceias nocturnas em Santa Clara e pelos piqueniques na ilha Kirrin. Mais tarde cursou Letras — ou “tretas”, como diziam os primos só para a picar — acalentando o sonho de um dia se tornar escritora. O curso, teórico de uma ponta à outra, foi uma decepção… e todos sabem que os sonhos, principalmente para os calões, raras vezes cumprem as expectativas que os alimentam. Valeu-lhe o sentido lúdico da vida que, na curva de um revés, a atirou para uma inesperada carreira jornalística ainda nos tempos em que estas se construíam pela tarimba. Passou por áreas tão distintas como Internacional, Sociedade, Cultura, Desporto, Projectos especiais e até Luxo e Lifestyle, viu morrer três jornais e uma revista promissora. Ao longo do percurso, reaprendeu a escrever e apimentou um estilo meio cronista com que se diverte hoje a dispar(at)ar nas redes sociais… isto a par de um necessário trabalho como freelancer. Porque afinal, como dizem as más línguas, parar é morrer… até mesmo para os calões.

Sugerir correcção
Comentar