Momentos que nunca se repetem
Avô e neto preparam-se para assistir à migração das andorinhas no final de um Verão. Um quer ser poeta e descrevê-la, o outro quer fotografá-la com o telemóvel.
Uma contadora de histórias escutou alguém de uma universidade sénior e verteu o seu relato, mais de dez anos depois, num livro delicado. Juntou-lhe as suas próprias memórias e narrou um instante que poderia ter sido vivido por alguns de nós. Os que escutam a Natureza.
Pelas palavras do neto é que vamos: “Esfreguei os olhos para ter a certeza do que via: centenas e centenas de andorinhas, como se fossem pontos azeviche equilibrados nos longos fios que entrecortavam os beirais por ali fora. Tantas, tantas!”
Virgínia Millefiori recorda ao PÚBLICO como tudo começou: “Na altura, dinamizava uma oficina de escrita na Universidade Sénior da Santa Casa de Ovar. Tínhamos acabado o nosso ritual inicial de cada sessão — ler em voz alta um excerto escolhido e comentar. Falávamos das palavras, antigas e novas, das pessoas, dos lugares.”
Nesse dia, a contadora de histórias deu-lhes a conhecer o seu fascínio pelas “nuances da ria de Aveiro (que nasce em Ovar) e pelas aves que por lá se avistam”. Uma professora primária aposentada contou-lhe com entusiasmo um episódio que lhe havia acontecido em tempos, “daqueles únicos, que dificilmente se repetem”.
Passou-se numa casa antiga onde viveu, “muito perto da Beira-Ria”. Esse momento acabaria por ser escrito pela participante na oficina. “Pedi-lhe que se servisse desse episódio para o exercício final da tarde — enfrentar o papel.”
Na semana seguinte, a ex-docente leu o que escrevera, “de forma sublime (como só as professoras primárias sabem)”, recorda Virgínia Millefiori. Título: “Crónica de Um Acto”, se bem se lembra. “Eu soube nesse momento que queria também contar uma história assim”, disso não duvida a autora de Instante.
Serviu-se então das suas memórias de infância — “o colo dos meus avós, a poesia que eles me diziam em voz alta (memorizada dos seus livros da escola) e o encantamento pela vida entre marés” — e escreveu esta história. Para a autora, o que acontece no final da narrativa, que não desvendaremos aqui, “serve como uma espécie de lembrete diário — há instantes que não se repetem nunca”.
A escolha da ilustradora obedeceu a uma condição, teria de ser alguém que conhecesse a ria. A de Aveiro ou outra. “A Helena Zália, apesar de ser natural de Guimarães, há já alguns anos tem a ria [de Aveiro] nas traseiras de casa. Desafiei-a e ela aceitou.”
Ilustrar a carga poética do texto
Helena Zália conta ao PÚBLICO por email: “As ilustrações para o texto da Virgínia não aconteceram num instante. Estive a rever as conversas que mantivemos online e a primeira vez que me falou desta história, ainda em fase embrionária, foi em 2017.” Mas só na Primavera de 2021 é que lhe chegou o texto praticamente finalizado. “Gostei tanto, sobretudo da carga poética que o mesmo guarda em si, que embarquei com ela nesta viagem.”
Normalmente, os projectos que desenvolve “são cozinhados” na sua mente “antes de se materializarem em desenhos no diário gráfico”. Este andou a vaguear algum tempo nos seus pensamentos antes de decidir o caminho a seguir.
Só em finais de 2022 fez um esboço no iPad e “começou a ser definida ali a essência do livro”. Depois de experimentar técnicas manuais, acabaria por “seguir o primeiro instinto”. Isto é, “ilustrações digitais, com um traço muito simples e minimalista (talvez o trabalho mais despojado que fiz até ao momento), simulando o uso de grafite e apontamentos com lápis de cor”.
A fundadora da Zai-Zai Edições (“livros manufacturados e à medida da sua mão”) convocou para ilustrar este texto memórias de infância de ambas, “as linhas que ligam as pessoas e os sentires mais interiores que as palavras despertam”. Não se conheciam pessoalmente, mas várias “coincidências e afinidades surgiram no processo de criação”.
Helena Zália é professora de Educação Visual e orienta oficinas de ilustração e expressão plástica. No entanto, também a pintura, a gravura, a fotografia, a costura e a criação de personagens tridimensionais têm servido para se expressar e comunicar.
Em Instante, comunica de modo visualmente poético, numa dança feliz com a narrativa que lhe deu origem.
O livro é apresentado neste domingo (17 de Setembro) no Festival Literário de Ovar, por Alexandre Rosas, com a presença das autoras (Parque Urbano, 10h). Está à venda na livraria Salta-Folhinhas, no Porto, e, sendo edição de autor, também mediante contacto com as autoras através das redes sociais.