Momentos que nunca se repetem

Avô e neto preparam-se para assistir à migração das andorinhas no final de um Verão. Um quer ser poeta e descrevê-la, o outro quer fotografá-la com o telemóvel.

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“O avô dizia uns versos do tempo da escola: Sobe, sobe, marujinho/ Àquele mastro real,/ Vê se vês terras de Espanha,/ As praias de Portugal" Helena Zália
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“Agora começa a ser tempo de Bela Luísa e Erva Príncipe no bule. A avó serve-as com bolachas de araruta” Helena Zália
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“— Olha! — apontou com o dedo. O mesmo que me havia mostrado Órion e a Ursa Maior, as mudanças da maré e as crias no ninho do canário” Helena Zália
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“— Estão de partida. Também nós o faremos um dia” Helena Zália
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Capa de Instante, edição de autor Helena Zália
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Uma contadora de histórias escutou alguém de uma universidade sénior e verteu o seu relato, mais de dez anos depois, num livro delicado. Juntou-lhe as suas próprias memórias e narrou um instante que poderia ter sido vivido por alguns de nós. Os que escutam a Natureza.

Pelas palavras do neto é que vamos: “Esfreguei os olhos para ter a certeza do que via: centenas e centenas de andorinhas, como se fossem pontos azeviche equilibrados nos longos fios que entrecortavam os beirais por ali fora. Tantas, tantas!”

Virgínia Millefiori recorda ao PÚBLICO como tudo começou: “Na altura, dinamizava uma oficina de escrita na Universidade Sénior da Santa Casa de Ovar. Tínhamos acabado o nosso ritual inicial de cada sessão — ler em voz alta um excerto escolhido e comentar. Falávamos das palavras, antigas e novas, das pessoas, dos lugares.”

Nesse dia, a contadora de histórias deu-lhes a conhecer o seu fascínio pelas “nuances da ria de Aveiro (que nasce em Ovar) e pelas aves que por lá se avistam”. Uma professora primária aposentada contou-lhe com entusiasmo um episódio que lhe havia acontecido em tempos, “daqueles únicos, que dificilmente se repetem”.

Passou-se numa casa antiga onde viveu, “muito perto da Beira-Ria”. Esse momento acabaria por ser escrito pela participante na oficina. “Pedi-lhe que se servisse desse episódio para o exercício final da tarde — enfrentar o papel.”

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“Esfreguei os olhos para ter a certeza do que via: centenas e centenas de andorinhas” Helena Zália

Na semana seguinte, a ex-docente leu o que escrevera, “de forma sublime (como só as professoras primárias sabem)”, recorda Virgínia Millefiori. Título: “Crónica de Um Acto”, se bem se lembra. “Eu soube nesse momento que queria também contar uma história assim”, disso não duvida a autora de Instante.

Serviu-se então das suas memórias de infância — “o colo dos meus avós, a poesia que eles me diziam em voz alta (memorizada dos seus livros da escola) e o encantamento pela vida entre marés” — e escreveu esta história. Para a autora, o que acontece no final da narrativa, que não desvendaremos aqui, “serve como uma espécie de lembrete diário — há instantes que não se repetem nunca”.

A escolha da ilustradora obedeceu a uma condição, teria de ser alguém que conhecesse a ria. A de Aveiro ou outra. “A Helena Zália, apesar de ser natural de Guimarães, há já alguns anos tem a ria [de Aveiro] nas traseiras de casa. Desafiei-a e ela aceitou.”

Ilustrar a carga poética do texto

Helena Zália conta ao PÚBLICO por email: “As ilustrações para o texto da Virgínia não aconteceram num instante. Estive a rever as conversas que mantivemos online e a primeira vez que me falou desta história, ainda em fase embrionária, foi em 2017.” Mas só na Primavera de 2021 é que lhe chegou o texto praticamente finalizado. “Gostei tanto, sobretudo da carga poética que o mesmo guarda em si, que embarquei com ela nesta viagem.”

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“Era final de Verão. Sabes que uma nova estação não tarda, pois já sentes o frio do pátio nos pés descalços” Helena Zália

Normalmente, os projectos que desenvolve “são cozinhados” na sua mente “antes de se materializarem em desenhos no diário gráfico”. Este andou a vaguear algum tempo nos seus pensamentos antes de decidir o caminho a seguir.

Só em finais de 2022 fez um esboço no iPad e “começou a ser definida ali a essência do livro”. Depois de experimentar técnicas manuais, acabaria por “seguir o primeiro instinto”. Isto é, “ilustrações digitais, com um traço muito simples e minimalista (talvez o trabalho mais despojado que fiz até ao momento), simulando o uso de grafite e apontamentos com lápis de cor”.

A fundadora da Zai-Zai Edições (“livros manufacturados e à medida da sua mão”) convocou para ilustrar este texto memórias de infância de ambas, “as linhas que ligam as pessoas e os sentires mais interiores que as palavras despertam”. Não se conheciam pessoalmente, mas várias “coincidências e afinidades surgiram no processo de criação”.

Helena Zália é professora de Educação Visual e orienta oficinas de ilustração e expressão plástica. No entanto, também a pintura, a gravura, a fotografia, a costura e a criação de personagens tridimensionais têm servido para se expressar e comunicar.

Em Instante, comunica de modo visualmente poético, numa dança feliz com a narrativa que lhe deu origem.

O livro é apresentado neste domingo (17 de Setembro) no Festival Literário de Ovar, por Alexandre Rosas, com a presença das autoras (Parque Urbano, 10h). Está à venda na livraria Salta-Folhinhas, no Porto, e, sendo edição de autor, também mediante contacto com as autoras através das redes sociais.

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