Uma viagem com cem anos, da sobrinha de Freud

Uma criança viaja na garupa de um peixe até a uma cidade onde “cada pessoa faz o que a torna feliz”. Utopia? Talvez não.

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“Vem comigo, o mundo é vasto e tem muitos portos!” E a criança foi Tom Seidmann-Freud
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“No mercado, as maçãs são dispostas em montinhos e cada qual leva para casa as de que precisa” Tom Seidmann-Freud
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“Seis amigos estão sentados no prado com bonitos livros. Gostam de lê-los e aprendem” Tom Seidmann-Freud
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“Ao entardecer, no jardim, Peregrino cava em redor da árvore” Tom Seidmann-Freud
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Capa do livro Viagem com o Peixe, edição da TRavesso (chancela da Ponto de Fuga) Tom Seidmann-Freud
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Com data de 1923, é-nos contado neste livro o sonho de uma criança chamada Peregrino. Diz-lhe um peixe que cresce repentinamente dentro de um frasco que trazia na mão: “Vem comigo, o mundo é vasto e tem muitos portos!” E a criança foi.

Há-de alcançar o porto de uma cidade desconhecida. Receoso, evita os seus habitantes. Até que percebe nada ter a temer: “Dois rapazes janotas vêm ao seu encontro. Dão-lhe as boas-vindas, como se cumprimentassem um grande amigo, e desatam a fazer-lhe perguntas. (É que, na cidade para onde o peixe o trouxe, todos são recebidos como irmãos.).”

Um mundo de bondade, entreajuda e abundância, que desconhece o dinheiro, o medo, os conflitos, os castigos, as injustiças. “Cada pessoa faz o que a torna feliz” e realiza-se na comunidade, com tempo para produzir, aprender e descansar, sem obrigações.

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“Por toda a parte as crianças ajudam. No cerejal, esperam-nas ´árvores carregadas de frutos” Tom Seidmann-Freud

Quem escreve esta história, Tom Seidmann-Freud, é afinal Martha Gertrud Freud, a sobrinha do pai da psicanálise, Sigmund Freud. Assinava com nome masculino porque estava convencida de que a condição de mulher seria obstáculo à divulgação do seu trabalho. Muito provavelmente, tinha razão.

Atracção imediata

Diz ao PÚBLICO Vladimiro Nunes, editor da TRavesso, chancela recente da editora Ponto de Fuga dedicada ao infanto-juvenil: “Poucas coisas me dão mais prazer do que resgatar preciosidades ao esquecimento ou à indiferença. Há nisso o gosto de partilhar descobertas, mas também, não nego, um autocomprazimento na reparação de injustiças. Foi nesses périplos por arquivos e recantos semiobscuros da Net que, já não me lembro como, me deparei com o trabalho da Tom Seidmann-Freud e a sua trágica biografia.”

Também nos fala do efeito imediato que os livros têm nos leitores que se aproximam das bancas nas mais recentes feiras do livro por onde tem andado, Portimão, antes, Porto, agora. E de como rapidamente vendeu perto de 150 exemplares.

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No sonho, Peregrino “traz na mão um frasquinho com um peixe chamado Niquelino” Tom Seidmann-Freud

“Mais do que a qualidade ou a marcha evolutiva do traço, que vai da art déco ao novo objectivismo, via Bauhaus, impressiona-me a forma orgânica, nada artificiosa, como ela produziu objectos que atraem imediatamente, mas estão carregados de subtilezas, que aliam sensibilidade poética a um sentido lúdico e de experimentação muito fora do comum”, descreve o também tradutor de várias obras para a infância e juventude.

Vladimiro conclui, na sua mensagem enviada por email: “A Viagem com o Peixe é um livro inacreditavelmente moderno, sobretudo se nos lembrarmos que foi publicado há exactos cem anos. Da representação igualitária (indistinta, até) dos géneros ao que hoje podemos ler como apologia de um rendimento básico universal, não faltam por ali lembretes de que, em tantas das questões que hoje debatemos, ninguém anda propriamente a inventar nada.”

Tom Seidmann-Freud (Martha Gertrud Freud) publicou o seu primeiro livro em 1914, Rimas para os mais Pequenos, também já editado pela TRavesso.

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Primeiro livro publicado por Tom Seidmann-Freud, em 1914 Tom Seidmann-Freud

Escreve-se na Viagem com o Peixe sobre ausência de obrigações numa cidade utópica e igualitária: “Quem ali se entregaria à preguiça, abstendo-se de mostrar as capacidades artísticas das suas mãos e o trabalho frutífero do seu coração?

Lê-se isto quando ainda ecoam as palavras de Dulce Maria Cardoso no encontro Book 2.0, The Future of Reading, em Lisboa. Ali propôs que o rendimento básico universal começasse pelos criadores. Para que vivam em condições dignas e se livrem de constrangimentos de sobrevivência que limitem a sua capacidade de imaginar e de pensar. Ganhávamos todos.

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