Seguradoras viram as costas às mineradoras de carvão

Produtores de carvão estão a ter de reservar dezenas de milhões de dólares para cobrir os próprios riscos de operação, uma vez que estão a ser progressivamente deixados à deriva pelas seguradoras.

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Mina de carvão na África do Sul, em 2021 Reuters/SIPHIWE SIBEKO

Alguns produtores de carvão estão a ter de reservar dezenas de milhões de dólares para cobrir os próprios riscos de operação, uma vez que estão a ser progressivamente deixados à deriva pelas seguradoras. Esta situação está a fazer com que os negócios no sector do carvão se tornem mais difíceis e dispendiosos, numa altura em que, ironicamente, a procura por este combustível fóssil aumentou.

A queima de combustíveis fósseis e consequente emissão de gases com efeito de estufa é uma das que mais contribuem para as alterações climáticas. Dezenas de seguradoras anunciaram restrições à cobertura para a indústria do carvão, especialmente para novos projectos, em resposta à pressão de accionistas, governos e grupos ambientalistas que querem limitar a contribuição deste combustível fóssil para o aquecimento global. Esta decisão no sector dos seguros vem na sequência de um esforço similar da banca de limitar financiamentos ligados ao carvão.

A actividade do carvão exige seguros abrangentes, incluindo cobertura para operações de prospecção e mineração, património imobiliário, equipamentos e responsabilidade ambiental. Três corretores de seguros afirmaram que, agora, para obterem com sucesso uma cobertura deste tipo para um cliente no sector, precisam não só de submeter vários pedidos mas também de esperar vários meses.

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Operação da empresa Thungela (antiga Anglo American) na mina de carvão Isibonelo, na África do Sul Philip Mostert/Anglo American/via REUTERS

Aposta no auto-seguro

Cinco executivos da mineração, entrevistados pela Reuters, afirmaram que a indústria do carvão está cada vez mais a migrar para soluções como o seguro próprio e o autofinanciamento, uma vez que a dificuldade de obter cobertura por parte das seguradoras está a encarecer os empréstimos, ou até mesmo a inviabilizá-los.

Algumas mineradoras, incluindo a Seriti Resources e a Thungela Resources, da África do Sul, já estão a reservar capital para o chamado seguro próprio. Neste momento, possuem apólices apenas para se protegerem contra perdas maiores e menos frequentes.

Embora a Seriti tenha negado dificuldades para obter financiamento bancário, Doug Gain, o director financeiro da empresa, afirma que conseguir uma maior cobertura das seguradoras constitui hoje um desafio.

“Reconhecendo as questões ambientais e sociais, assim como os factores relacionados que reduzem a capacidade global de segurar a actividade carvoeira, a Seriti decidiu apostar cada vez mais no auto-seguro”, afirmou Doug Gain à Reuters numa resposta por email.

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Técnicos prepara uma máquina para operação subterrânea na fábrica da Thungela na África do Sul Philip Mostert/Anglo American/via REUTERS

O director financeiro não detalhou qual é o custo desta aposta para a Seriti, empresa que abastece muitas das centrais eléctricas a carvão da África do Sul.

Lucros recorde do sector em 2022

Muitos produtores de carvão estão a encontrar soluções alternativas e a produção continua a aumentar. A Agência Internacional de Energia (AIE) prevê que o abastecimento global em 2023 vá ultrapassar o recorde do ano passado, de 8,6 mil milhões de toneladas, depois de a crise energética desencadeada pela invasão da Ucrânia pela Rússia ter forçado muitos países a usar carvão para manter as luzes acesas.

A necessidade de reservar fundos para o seguro próprio implica, contudo, que uma larga soma de dinheiro fique “presa” no balanço das empresas. Isto pode deixar as empresas de carvão mais vulneráveis ​​a custos elevados quando algo corre mal, avisam analistas do sector.

As empresas de carvão conseguiram absorver todos os aumentos nos custos operacionais devido aos lucros recorde que obtiveram no ano passado, disseram três analistas à Reuters. Mas as mineradoras podem vir a ter dificuldades em tempos de crise, já que os entraves colocados pelas seguradoras acabam por aumentar o custo de produção.

“O financiamento torna-se impossível sem seguro”, disse Ben Davis, analista de acções da Liberum.

“Para os produtores existentes neste momento, este não é um grande problema porque ainda podem reservar fundos, dados os preços sustentados do carvão. Mas haverá tempos mais difíceis pela frente para aqueles que não colocarem dinheiro de lado”, disse o analista.

Valor dos seguros triplicou

A diminuição da oferta de seguros para os produtores de carvão fez com que os prémios aumentassem quase três vezes mais do que o valor de referência para a indústria, revelam dados da corretora Willis Towers Watson.

As taxas de seguro para o carvão mineral subiram mais de 20% no ano passado, muito acima do aumento de 7,3% calculado no índice de referência Marsh Global Insurance Market Index.

A Whitehaven Coal, a maior mineradora de carvão independente da Austrália, viu os custos de seguro praticamente duplicarem nos últimos dois anos, disse à Reuters uma pessoa que conhece a actividade da empresa, mas que pediu para não ser identificada uma vez que esta informação é financeiramente sensível.

Contactada pela Reuters, a Whitehaven declinou qualquer comentário.

A Seriti tem uma combinação de auto-seguro para cobrir alguns activos, ao mesmo tempo que mantém alguma cobertura do sector de seguros para sinistros como enchentes ou incêndios subterrâneos, afirmou um porta-voz.

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Mineração de carvão na África do Sul Philip Mostert/Anglo American/via REUTERS

Para reduzir o custo da cobertura do seguro, a Seriti está a aumentar a retenção de capital na sua própria unidade de seguros, para que apenas as camadas de risco excedentes precisem de ser seguradas por terceiros.

“Prevemos que a capacidade disponível de seguro para activos de carvão mineral continue a diminuir ao longo do tempo. É provável que esta capacidade venha a ser extremamente limitada por volta de 2030”, disse Gain.

A Thungela, uma empresa oriunda da Anglo American, reservou 1,2 mil milhões de rands (o equivalente a quase 62 milhões de euros) para segurar alguns dos próprios riscos no ano passado. Simultaneamente, mantém a cobertura de riscos associados a catástrofes, incluindo fenómenos como colapsos de minas ou desastres naturais, garantida pelo mercado de seguros.

A Thungela pretende tornar-se totalmente coberta por seguro próprio no futuro, mas não especificou o prazo.

Ao todo 45 companhias de seguros introduziram agora restrições à cobertura para a indústria do carvão, incluindo a Allianz, Swiss Re e Munich Re, de acordo com o grupo de pressão ambiental Insure Our Future.

Algumas seguradoras ainda têm negócios relativamente grandes na área dos combustíveis fósseis. A AEGIS (Bermudas), a PICC (China), a SOGAZ (Rússia), a Chubb (Suíça) e a Allianz (Alemanha) estão entre as cinco primeiras em termos de prémios brutos em 2022, de acordo com dados fornecidos exclusivamente para a Reuters pela Insuramore, empresa especializada em classificações e análises de seguros.

A AEGIS referiu num email que o negócio de carvão representa uma pequena parte do seu total de investimentos, e que o objectivo é reduzir ainda mais essa fatia. Já a Allianz afirmou que eliminará gradualmente os negócios baseados no carvão até 2040.

A Chubb, que afirma não garantir novos riscos para mineradores que geram mais de 30% de receitas a partir do carvão, não quis comentar. A chinesa PICC e a russa SOGAZ não responderam a um pedido de comentário da Reuters.

Alguns produtores de carvão criaram, dentro do próprio grupo, uma empresa separada para gerir os seus seguros – os chamados valores cativos. Estes cativos podem ser cobertos por uma combinação dos próprios fundos, de companhias de seguros individuais e ainda de um grupo de companhias de seguros que trabalham em conjunto para partilhar o risco com outros (ou seja, resseguro).

As companhias de seguros podem actuar tanto no seguro primário como no resseguro, tendo assim diferentes compromissos em matéria de questões sociais e ambientais para com diferentes partes do negócio.

“A maior parte do mercado de resseguros permanece aberta às operações em curso das empresas de carvão, mas não aos novos projectos”, disse Peter Bosshard, coordenador do Insure Our Future.

Fundo de seguro mútuo

Na Austrália, as empresas de carvão exploraram a criação de um fundo de seguro mútuo ao qual todos pagariam como forma de auto-seguro, mas as negociações estagnaram devido à falta de apoio governamental, disseram pessoas próximas do processo.

“Estabelecer um fundo mútuo para a indústria do carvão é uma questão da indústria do carvão”, disse um porta-voz do Departamento do Tesouro australiano. “Qualquer apoio financeiro ou garantia para um fundo mútuo envolveria uma decisão do Governo.”

O porta-voz não informou se o Governo foi abordado por empresas sobre o fundo.

Nombasa Tsengwa, presidente executivo da mineradora de carvão sul-africana Exxaro Resources, disse que as seguradoras em algumas regiões, incluindo na Ásia, estavam mais dispostas a fazer negócios do que em outros lugares.

“O que também notámos é que existem outras jurisdições que estão interessadas em absorver o risco dos negócios do carvão”, disse Tsengwa, referindo-se às regras mais rigorosas na Europa.

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Mina de carvão na Indonésia REUTERS/YUSUF AHMAD

“Refiro-me a ir além dos mercados normais, baseados no Reino Unido, e procurar financiadores e cobertura de seguro na Ásia”, acrescentou.

Os preços do carvão atingiram máximos históricos em Setembro de 2022, uma vez que os países europeus se esforçavam para substituir o gás russo por uma alternativa, fazendo com que os lucros das mineradoras de carvão disparassem.

Só que os preços caíram desde então. E os analistas dizem que a necessidade de os produtores suprirem as próprias necessidades de financiamento e de seguros poderá aumentar o impacto da descida dos preços nos lucros.

A Thungela e a Exxaro viram os lucros cair 75% e 29%, respectivamente, no primeiro semestre, devido à queda dos preços. A grande mineradora Glencore disse que o lucro dos seus activos industriais caiu 51% no primeiro semestre devido aos preços mais baixos, especialmente no carvão, e aos custos associados à inflação.

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