I. Transição Energética: o cavalo de Tróia da mineração

Apesar de tecnologias alternativas de menor impacto estarem a ser desenvolvidas, o lítio é considerado essencial para o armazenamento de energia de fontes renováveis. Mas não se trata apenas do lítio.

Políticas públicas europeias para mitigar as alterações climáticas apresentam a transição energética como necessária, urgente e positiva para descarbonizar a economia, através da substituição de energias fósseis por renováveis. No entanto, apesar da urgência e necessidade de reduzir emissões de carbono, o modelo de transição corporativo no qual estas políticas assentam — como, por exemplo, o Novo Tratado Verde Europeu — apresenta soluções que requerem uma enorme quantidade de recursos minerais, contribuindo para legitimar projectos extractivistas assentes na retórica da “mineração verde”. Infelizmente, como veremos, estas soluções não são solução, mostrando-se ineficazes, insuficientes e até inviáveis, enquanto aceleram a degradação ambiental, aumentam emissões e acentuam desigualdades sociais em territórios periféricos.

Transição energética e mineração em Portugal

Apesar de tecnologias alternativas de menor impacto estarem a ser desenvolvidas (ex. baterias de sódio), o lítio é considerado essencial para o armazenamento de energia de fontes renováveis. Mas não se trata apenas do lítio. De acordo com um relatório do Banco Mundial (2020), o modelo de transição energética proposto requer uma intensidade mineral superior à dos combustíveis fósseis, assente especialmente em 17 minerais críticos: alumínio, chumbo, cobalto, cobre, crómio, ferro, grafite, índio, lítio, manganês, molibdénio, neodímio, níquel, prata, titânio, vanádio e zinco. Actualmente em Portugal, há contratos de prospecção e exploração mineira para inúmeros destes e outros minerais, incluindo lítio, ouro, prata, cobre, chumbo, ferro, molibdénio, níquel, titânio, tungsténio, volfrâmio e zinco, entre outros.

Segundo dados da Direcção-Geral de Energia e Geologia (DGEG), actualmente em Portugal existem nove contratos de extracção de lítio, assinados entre 1992 e 2021, que cobrem uma área total de 2615 hectares distribuída pelos distritos de Castelo Branco, Guarda, Vila Real e Viana do Castelo — incluindo as Minas de Alvarrões (641ha), Barroso (542ha), Romano (825ha), Argemela (403ha), Lousas (66ha), Gondiães (28ha), Formigoso (1 ha), Porto Vieiro (68ha) e Seixalvo (25ha). Há também um contrato de prospecção na Mina de Circo, assinado em 2021, que cobre 25 mil hectares no distrito de Bragança. Além destes, existem 27 pedidos de prospecção e extracção de lítio em avaliação pela DGEG, cobrindo cerca de 726 mil hectares no Norte e centro de Portugal.

Somando a estes, em Dezembro de 2021 foi a consulta pública o Plano de Prospecção e Pesquisa (PPP) de Lítio com um total de 304 mil hectares, afectando oito dos 18 distritos administrativos de Portugal, incluindo também — além dos já referidos — Braga, Coimbra, Porto e Viseu. Os actuais contratos de extracção de lítio correspondem a 7% da área total de projectos de mineração e, avançando o PPP de Lítio, este levaria a um aumento de cerca de 77% na área atribuída à prospecção mineira, correspondendo a 47% da área total. Em conjunto estes projectos de mineração de lítio afectam aproximadamente um milhão de hectares e cerca de 11,5% do território nacional.

Cada um destes projectos inclui também a extracção de outros minérios, justificada pelo alegado “interesse público” da extracção de lítio para a transição energética — o cavalo de Tróia da mineração —, encobrindo interesses económicos em que, só em 2021, este metal teve uma subida de 500% no valor de mercado. Neste contexto, por exemplo, a Savannah Lithium Lda alega que poderia extrair até 220 mil toneladas só na Mina do Barroso — o equivalente a 80% dos recursos nacionais deste metal em 20% da área actual atribuída à extracção de lítio. Se estes valores fossem verdade, não se justificavam outras explorações. No entanto, promovem um mercado de especulação sobre os direitos atribuídos para exploração mineira.

Outros projectos extractivistas avançam entretanto. Dando o exemplo do cobre, existem actualmente cinco contratos de extracção que afectam cerca de 14,5 mil hectares, 84% dos quais nos distritos de Beja e Setúbal, a que corresponde 37% da área total de exploração mineira em Portugal. E ainda 14 contratos de prospecção de cobre que cobrem uma área total de 338 mil hectares, cerca de 85% da área actualmente atribuída à prospecção mineira, afectando principalmente a região do Alentejo nos distritos de Beja, Portalegre e Évora (85%).

Materiais críticos: a pegada extractivista desta transição

Um estudo da Agência Internacional de Energia (AIE) estima que, em 2040, a dimensão do mercado global de minerais críticos para a transição energética, como o lítio e o cobre, aproximar-se-á da dimensão actual do carvão. De facto, o Banco Mundial projecta um aumento superior a 400% na procura média anual de minerais críticos até 2050 — de cerca de 40 milhões para mais de 160 milhões de toneladas — num cenário que visa manter a subida média de temperatura global abaixo dos 2ºC. No entanto, estas são estimativas conservadoras.

Um estudo da União Europeia prevê que o consumo europeu de metais poderá aumentar 600% em 2030 e 1500% em 2050. Em particular, estima-se que as tecnologias para armazenamento de energia, como baterias para veículos eléctricos, farão aumentar a procura de lítio em 1800% e de cobalto em 500% em 2030, com aumentos na ordem dos 6000% e 1500% em 2050, respectivamente. Dados da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) prevêem ainda um aumento na utilização global de materiais de 44% per capita entre 2017 e 2060 — de 89 para 167 mil milhões de toneladas anuais — expandindo-se simultaneamente o consumo de combustíveis fósseis em 18%, de minerais em 43% e de metais em 63% per capita.

Com esta pegada material, esta transição energética é ineficaz na mitigação das alterações climáticas. Contradizendo o discurso institucional da mineração verde, a indústria de extracção mineira é actualmente responsável por uma porção significativa das emissões globais de gases de efeito de estufa (GEE), além de vastos impactos sociais e ecológicos. Em particular, a OCDE estima que em 2060 a extracção e processamento de materiais irá emitir 50 mil milhões de toneladas de GEE — equivalente ao total global de emissões em 2019.

Dados do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) revelam que as emissões de GEE associadas à produção primária de materiais, incluindo extracção e processamento mineral, representam actualmente cerca de 11% do total de emissões globais — um valor equiparável aos 12% das emissões globais provenientes do sector do transporte rodoviário. Em Portugal, a indústria de extracção e processamento de materiais produz cerca de 24% das emissões de GEE, enquanto o transporte rodoviário corresponde a 28% das emissões. Neste contexto, torna-se evidente que o crescimento da indústria extractiva dificilmente irá contribuir para “combater as alterações climáticas”, antes expandindo as emissões de GEE do sector de transportes para o sector de extracção e processamento material.

Além disto, esta transição energética é também insuficiente. De facto, em vez da substituição de combustíveis fósseis por fontes renováveis, estamos perante a expansão do sistema energético e a acumulação de fontes de energia. Apesar do aumento na produção de energias renováveis, tanto o consumo energético como a procura global de combustíveis fósseis mantiveram um crescimento de quase 5% em 2021, com estes últimos suprindo 80% da energia a nível global, segundo a AIE.

Em Portugal, de acordo com a DGEG, as energias renováveis (ex. hídrica, eólica e fotovoltaica) representaram 48% da produção energética bruta nacional em 2020. No entanto, 69% do consumo de energia primária assentou em combustíveis fóssil (ex. carvão, petróleo e gás natural), com o consumo global interno destes a aumentar 4%, enquanto a produção de energias renováveis diminui 13% entre 2021 e 2022 — parcialmente devido à seca. Na verdade, a produção de energias renováveis não acompanha o crescente consumo energético que se mantém dependente de energias fósseis, sublinhando a necessidade de questionar os padrões de consumo da sociedade actual e o modelo socioecónomico subjacente.

Como se não bastasse, esta transição energética, além de ineficaz e insuficiente, é também inviável, dado os recursos materiais finitos de que depende. Isto significa que a expansão do sector de energias renováveis, sem questionar o modelo socioeconómico vigente, não poderá chegar a colmatar as necessidades energéticas actuais. Antes, podemos antever a expansão extractivista como requisito para tornar esta transição viável no curto prazo a nível material, e insustentável no longo prazo a nível ambiental.

Dando como exemplo a conversão eléctrica dos transportes: se cada bateria utiliza cerca de 5kg de lítio e 14kg de cobalto por cada 40kWh de potência, para substituir a actual frota mundial de veículos seriam necessárias pelo menos 6 milhões de toneladas de lítio e 18 milhões de toneladas de cobalto. Isto equivale a quase um terço das reservas globais de lítio (21Mt) e a mais do dobro das actuais reservas mundiais de cobalto (8Mt), segundo dados do US Geo Survey. Metade das reservas mundiais de cobalto encontram-se na República Democrática do Congo, mas estimam-se ainda 120Mt de cobalto no fundo dos oceanos Atlântico, Pacífico e Índico — onde já se avançam contratos de exploração para 130 milhões de hectares. Como as baterias eléctricas têm uma garantia entre cinco e oito anos e a taxa actual de reciclagem de lítio é inferior a 1%, só a conversão eléctrica dos transportes levaria à exaustão das reservas mundiais de lítio antes de 2050. No caso do cobre, mesmo com a extracção em alto mar, e sem contar com os seus enormes custos ambientais, em menos de 50 anos ter-se-ia esgotado este recurso apenas no fabrico de automóveis eléctricos.

Baterias de iões de lítio representaram mais de 50% da procura global de lítio em 2019, com um aumento anual de 20% na produção deste metal desde 2000. Com a actual corrida ao lítio, a crescente prospecção deste metal identifica 86 milhões de toneladas por explorar, das quais quase 60% se encontram no chamado “triângulo do lítio”: Bolívia (21Mt), Argentina (19Mt) e Chile (10Mt). Na Europa, as maiores reservas de lítio, ao contrário do afirmado por organismos oficiais, não se encontram em Portugal (270 mil toneladas) mas estimam-se na Alemanha (3Mt), Sérvia (1Mt), República Checa (1Mt) e Espanha (300 mil toneladas). No entanto, perante o exposto, a questão não é onde efetuar a extração mineral, mas sim questionar a sua justificação.

Neste contexto, poderíamos afirmar que este modelo de transição energético corporativo, assente numa lógica tecnocrata e neoliberal, reproduz o mesmo modelo socioeconómico hegemónico que está na origem da actual crise climática, ecológica e social. Em particular, expande a indústria extractivista para novos territórios periféricos, ameaça ecossistemas e comunidades de baixo impacto, beneficia maioritariamente os principais grupos económicos responsáveis por emissões de GEE e, perante um quadro de urgência climática, pretende ser imposto na ausência de real debate e participação pública. A solução certamente não será única, mas irá requerer participação popular e um questionamento mais profundo sobre o modelo socioeconómico vigente que está na origem das alterações climáticas, colapso ecológico e desigualdade social.

A segunda parte deste artigo de opinião será publicada este domingo, 18 de Dezembro, no Azul

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