A “descarbonização” das habitações precisa de mais de 26 mil milhões de euros

Em Portugal, 70% dos edifícios não são eficientes do ponto de vista energético. Estudo da Zero aponta caminhos para descarbonizar habitações, como o fim do aquecimento a gás e biomassa.

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A “descarbonização” dos edifícios precisa de ser mais ser rápida, justa e eficaz Miguel Manso
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Uma das palavras-chave das próximas décadas é descarbonizar – ou seja, reduzir as emissões de dióxido de carbono (CO2) e outros gases com efeito de estufa de forma a mitigar as alterações climáticas –, e o consumo energético dos edifícios é um dos pontos-chave para a transição necessária. A associação ambientalista Zero fez um zoom nos edifícios residenciais, que representam 28% do consumo de energia final da União Europeia (UE), e identificou o investimento necessário: entre 26,2 e 28,5 mil milhões de euros para descarbonizar o consumo de energia final nas habitações em Portugal.

A estimativa consta do estudo Viabilidade da descarbonização dos edifícios residenciais –​ desafios e propostas no contexto de Portugal, produzido pela associação ambientalista Zero no âmbito de um projecto financiado pela Fundação Europeia para o Clima sobre edifícios sustentáveis e pobreza energética, com o contributo de investigadores do CENSE – Center for Environmental and Sustainability Research, da Universidade Nova de Lisboa.

Portugal tem uma tarefa hercúlea pela frente: 70% dos edifícios não são eficientes do ponto de vista energético, nota a Zero, com base em dados do Instituto Nacional de Estatística (INE), da Direcção Geral de Energia e Geologia (​DGEG) e do Inquérito ao Consumo de Energia no Sector Doméstico (ICESD) 2020. Isto tem impacto no bem-estar das pessoas que habitam esses edifícios, mas também nos seus bolsos – com mais gastos em aquecimento e arrefecimento – e, é claro, na pegada ecológica, com emissões desnecessárias.

Mas quais são, afinal, os passos previstos para “descarbonizar” os edifícios residenciais? A verdade é que já se conhecem vários caminhos possíveis, e o estudo da Zero não é sequer o primeiro a pôr uma etiqueta com o preço estimado – a própria Estratégia de Longo Prazo para a Renovação de Edifícios (ELPRE), aprovada em 2021, já previa que 65% dos edifícios de habitação fossem intervencionados até 2030 e calculava um investimento de 26,8 mil milhões de euros.

O problema, sublinha a Zero, é que essa transição não está a ser rápida nem justa, ou sequer eficaz. E o dinheiro não é o único obstáculo: faltam apoios mais acessíveis para que as soluções cheguem às populações vulneráveis que sofrem em particular com a pobreza energética, mas também algumas garantias para as indústrias e serviços que tratam da construção dos edifícios e equipamentos adaptados. “O estudo traz um panorama da situação nacional e recomenda caminhos que em muitas estratégias e planos nacionais ainda são genéricos”, reforça Islene Façanha, uma das responsáveis pelo projecto.

O que é preciso fazer?

A Zero considera que a base principal para a descarbonização deve ser “a renovação do edificado, a redução de necessidades energéticas e a melhoria do conforto ambiente”, apelando a que as medidas e investimentos tenham como prioridade a melhoria do desempenho energético.

São definidos, assim, quatro objectivos para descarbonizar as habitações:

  1. Eliminação do consumo de combustíveis fósseis (como o aquecimento a gás);
  2. Redução “significativa” do consumo de biomassa (adeus, lareiras e salamandras);
  3. Aumento do consumo de energia proveniente de fontes renováveis;
  4. Aumento da eficiência energética dos edifícios e equipamentos.

Parte da solução passará pela substituição de aquecedores e salamandras por bombas de calor e também pela troca de esquentadores a gás por sistemas solares térmicos ou outros modelos de bombas de calor. Porquê tanta insistência nas bombas de calor? O estudo refere que o uso de uma bomba de calor pode permitir uma redução de emissões do aquecimento até 90% por comparação a uma caldeira a gás. Por outro lado, os equipamentos a biomassa trazem várias implicações em termos de disponibilidade de recursos florestais mas também de saúde, com impacto na qualidade do ar.

Ao todo, para conseguir erradicar os combustíveis fósseis do consumo doméstico, o estudo da Zero calcula que seja preciso investir entre 12,2 e 14,2 mil milhões de euros. Já para trocar equipamentos tendo em vista a redução do consumo de biomassa seriam necessários entre 7,5 e 7,8 mil milhões de euros. Por fim, no que toca à eficiência energética (incluindo lâmpadas LED e melhorias no aquecimento ambiente), a estimativa é de 6,4 mil milhões de euros.

É assim que chegamos à estimativa entre 26,2 e 28,5 mil milhões de euros para descarbonizar o consumo de energia final nas habitações em Portugal.

“Criar condições”

Um dos grandes problemas – depois, claro, da grande questão “de onde virá esse dinheiro?” – é que o mundo não está preparado para tantas bombas de calor. Em vários sentidos.

É preciso encarar a realidade a montante, nomeadamente os desafios do mercado. O estudo da Zero também ouviu fabricantes de equipamentos de climatização e representantes das empresas instaladoras, que ajudaram a identificar alguns obstáculos que é preciso transpor: a dependência do mercado externo (em particular o asiático) e a pouca capacidade instalada de fabrico de bombas de calor, o custo de investimento nestes equipamentos (e a incapacidade das famílias para o fazer) e ainda a necessidade de adaptação da maioria dos imóveis.

Existe também alguma incerteza sobre o ritmo esperado nos planos e estratégias nacionais, e a falta de políticas robustas de médio e longo prazo não tem ajudado. Além disso, refere a Zero, é preciso levar em consideração que mesmo o mercado internacional de bombas de calor não está preparado para a transição em tão curto espaço de tempo. Aliás, o crescimento repentino da procura desencadeou problemas, levantando “dificuldades em termos de logística e stocks, tornando a disponibilização de produtos difícil e tempos de entrega elevados”.

Há ainda a questão de que as bombas de calor não são uma solução ambientalmente perfeita, devido aos gases fluorados necessários para o seu fabrico. “É importante referir que o investimento na renovação da componente passiva do edificado poderá reduzir a necessidade de investimento nos equipamentos”, nota Islene Façanha, da Zero. A renovação dos edifícios resulta num melhor desempenho energético, o que se traduz em menores necessidades de energia. “Assim, nem toda a população teria a necessidade de ter uma bomba de calor”, completa.

Enquanto se espera por uma evolução tecnológica que promova alternativas com menor efeito de estufa, a Zero aponta também para a necessidade de técnicos especializados na adaptação dos edifícios para a instalação destes equipamentos.

É preciso, resume Islene Façanha, “criar condições”, seja na legislação, nos incentivos para “uma indústria mais amiga do ambiente” ou no apoio para a população. Aliás, a nível da arquitectura e construção civil, fazem falta não apenas novas práticas, mas também “uma mudança cultural e social que dê prioridade à eficiência energética, à circularidade, e que seja inclusiva”.

Ninguém fica para trás

Uma das mensagens principais da Zero é que a descarbonização não deve ser feita a qualquer custo, e uma das exigências é não deixar as populações mais vulneráveis de fora desta transição.

As questões relacionadas com a pobreza energética são já bem conhecidas dos portugueses, e os autores do estudo sublinham que “é necessário que a reabilitação urbana seja uma aposta séria, contribuindo significativamente também para o combate à pobreza energética”. Os programas públicos devem, por isso, assegurar a inclusão dos agregados mais vulneráveis. Ora, grande parte das famílias mais vulneráveis, em particular nas grandes cidades, não vive em habitação própria, o que as coloca fora do âmbito dos actuais programas de apoio à reabilitação do edificado, que se destinam mais a proprietários.

Mas há mais a resolver: além de diversificar as fontes de financiamento, é preciso envolver mais as populações na transição energética. Um dos exemplos é a promoção de cooperativas de energia, que permitem a produção renovável descentralizada de energia mais barata e também a distribuição dos custos entre os participantes.

As autarquias podem ter aqui um papel essencial, sublinha o estudo, seja ao criar espaços de informação com o apoio de associações de energia locais, seja ao promoverem elas próprias comunidades de energia baseada em edifícios públicos para partilha de energia com consumidores vulneráveis.

Islene Façanha dá ainda o exemplo de alguns projectos, como o Ponto de Transição, um projecto-piloto promovido pela Fundação Calouste Gulbenkian, ou o Balcão de Habitação e Energia de incidência local, um programa mais recente da Deco. A activista da Zero nota ainda que o documento que foi posto em consulta pública para a Estratégia Nacional de Longo Prazo para o Combate à Pobreza Energética mencionava iniciativas como o gabinete de Aconselhamento de Energia da Deco e o Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC) também prevê a criação de one-stop shops para dar informação e apoio a reabilitações dos edifícios.

Em suma, a Zero considera que os resultados do estudo reforçam a necessidade de cooperação entre os decisores políticos e outros actores sociais, desde o mercado aos consumidores finais, trazendo “não só o enquadramento completo sobre o tema, mas também uma visão alargada dos desafios e respostas”, reforça Islene Façanha.

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