Música à la carte

Alguém imagina a quantidade de crianças talentosas, do ponto de vista musical, que foi desvalorizada devido à inépcia de professores de música e de escolas de formação?

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Foi publicado um artigo absolutamente pertinente de Bárbara Reis, “Madalena Perdigão e o ensino da música”.

Não me referirei ao papel desta grande pedagoga, até porque a própria jornalista prenunciou que voltaria a este tema.

Bárbara Reis (B.R.) atreveu-se a pôr o dedo numa ferida que perdura há muitas décadas. Diria, desde sempre. O parco, senão deficiente, ensino da música no universo das crianças mais pequenas. Começou por chamar ao artigo professores que não só estudam e documentam o que falam, como também têm feito música, durante as suas vidas profissionais, no terreno com crianças mais pequenas. Convocou, igualmente, António Damásio, cujo pensamento deveria, a meu ver, fazer parte dos currículos da formação de professores da Educação de Infância e do 1.º Ciclo. B.R. atreveu-se a partilhar a importância da música na sociedade e nas crianças em particular.

O que falha então?

Portugal não tem professores de música especialistas para a Educação de Infância e para o 1.º Ciclo. Por este facto, temos um paradoxo face ao exposto.

A boa notícia: temos professores do ensino superior e formadores desta área referenciais quer a nível nacional, quer internacional. A má notícia: temos escolas do ensino superior com um desinvestimento no ensino da música (à exceção da formação de instrumentistas). Vamos desfiar isto.

A música aparece na escola, talvez, como uma espécie de morango em cima de um doce extraordinário.

Como se partilha esta arte junto das crianças? Que atributos específicos podem ser atribuídos a um professor de música para um eficaz e significativo processo de partilha e de aprendizagem? Existe um perfil de professor de música?

Há uma questão delicada na Música e na Dança (sub-domínios da Educação Artística) que diz respeito à proficiência didática dos músicos que, muitas vezes, na falta de um palco, escolhem o ensino como forma de emprego.

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Daniel Rocha (arquivo)

Quanto ao professor de música na Educação de Infância, nunca houve uma formação base rigorosamente dedicada a ele. Muitos são professores de instrumento e a sua ambição é sempre de prática instrumental.

De repente, descobrem que, afinal de contas, isso é um oásis pequenino que já está ocupado por muitos a beberem da mesma água. Como não há, portanto, muito espaço, há que encontrar outros oásis para sustentar o seu próprio trabalho. Não raras vezes, saem sem capacidade pedagógica dos seus espaços de formação académica e mergulham num espaço sobre o qual nunca tiveram tempo para meditar. Embora, no meio disto tudo, haja sempre gente muito capaz para trabalhar com as crianças. Todos os dias encontramos gente que descobre, neste primeiro impacto, coisas absolutamente espantosas.

Não advogo a ideia de uma prática exclusiva dedicada a uma metodologia. Não existe uma forma ideal de ensinar. Existem milhares de possibilidades. Agora, perguntamo-nos ao espelho: quais são, para mim, as mais adequadas, tendo em conta a minha experiência? Quais são, quando damos conta, as que têm mais sentido para cada um de nós? Quais são as que nos permitem colocar desafios aos miúdos? E sabemos que vamos, a partir daqui, produzir informação.

Um professor tem que estar confrontado com a ideia de quem são as crianças que tem pela frente. “O que é uma criança com quatro anos?” Precisa de fazer uma espécie de raio-x musical a cada estádio de desenvolvimento da criança. E isso aprende-se com Piaget, com Willems, com Swanwick, entre muitos outros referenciais nesta matéria.

Têm que saber necessariamente quais são os interesses das crianças, mas também aquilo que é absolutamente fundamental do ponto de vista das Orientações Curriculares da Educação Pré-Escolar (2016) ou das aprendizagens essenciais do 1.º Ciclo. Estes e outros documentos estão constantemente partilhados nas associações APEI (Educação de Infância) e APEM (Educação Musical).

Precisamos, também, de uma espécie de perfil do professor de música. E vejo gente muito disponível para amar o gozo de uma criança fascinada por um som. Se encontrarmos um colega que esteja fascinado com isso e que perceba que a criança se apodera dele e pode transmitir e passar a outros, isso pode ser um bom princípio. Ficamos fascinados com uma criança que não fica indiferente porque ouviu um excerto musical que não sabe de onde vem e pergunta-nos o que é que é. Isso transporta-nos para o tal baú do fundo da gaveta que todos nós temos que ter.

Mas não é fácil. Não é nada fácil ser um professor de música com crianças mais pequenas.

Como é que isto se faz?

Faz-se com gente astuta do ponto de vista estético, apurada do ponto de vista técnico, alguém apaixonado pelo seu instrumento, seja um som na flauta de bisel, seja um som numa guitarra ou piano, mas que passe esse testemunho e as crianças nos olhem e digam “outra vez…”

“És tu. É contigo que eu quero cantar aquela canção.” Aula de Música. E, nesse dia, a criança é expedita a sair de casa.

No fundo, nós, adultos, somos o modelo. E o modelo não pode ser, de todo, alguém que chegue e nos diga, claramente, que a música que ouvimos ou fazemos não presta. Essa não é a música. É anti-música. É um convite a afastarmo-nos. E isso ainda existe. Alguém imagina a quantidade de crianças talentosas, do ponto de vista musical, que foi desvalorizada devido à inépcia de professores de música e de escolas de formação?

Mas isto dá um trabalhão enorme. Pressupõe abrirmos bem as nossas orelhas e partilharmos com as crianças jazz, música erudita, pop-rock, músicas do mundo, alternativa, contemporânea.

Tudo.

E não nos refugiarmos apenas nos guetos da música da moda. Pressupõe descobrimos, por exemplo, o universo dos Monthy Python, compreendermos aquela retórica da comunicação pelo humor e fundirmos, q.b., com a música e o som. Fazer a criança perceber que 2+2 pode ser igual a 5 (curiosamente, o título de um tema dos Radiohead).

Sou um defensor da ideia de que não é fácil ser um professor de música com crianças pequenas. Não é fácil ser professor.

As impressões, as vivências que temos no jardim de infância e no 1.º ciclo são fundamentais para o resto da nossa vida. Ficam guardadas e predestinam-nos. Devíamos ter professores de música exemplares.

Porque precisamos de estar enamorados por aquilo que fazemos. Existe uma coisa que é fascínio como “tenho uma coisa para vos contar que não sei se vou dizer a mais alguém... só o digo a vocês…". E, de repente, temos ali um momento único. Acontece. É como quem conta muito bem histórias.

Penso também que deveria haver uma escola de elite de formadores de didática da música para a primeira infância. Diria, até ao fim do 1.º ciclo. Precisamos de um grupo grande de pessoas experimentadas, que arriscam, que se atrevem a fazer diferente. Mas que deixam um rasto de música significante nas crianças. Estas poderão afirmar mais tarde “quero aprender a tocar piano”. A missão deste professor especialista está cumprida.

Consigo imaginar um professor de música culturalmente muito rico. É o agente que faz o clique on e que nos deixa surpreendidos, boquiabertos.

E a paixão que os miúdos veem nas reações do nosso corpo, na forma como nós nos expomos, é condição fundamental para que eles sintam que o professor também gosta daquela atividade. É um pouco a ideia da cumplicidade. E isto não se compra.

Precisamos de pessoas com o fundo da gaveta.

Nesta perspetiva, teríamos poucos professores de música para a infância em Portugal. Quero preservar a ideia de que existe uma escola, um grupo de pessoas dedicado a esta causa e que tem, em si, este dom de especialidade.

Existe em Portugal apenas um curso de Pós-Graduação de Música na Infância (UNL). Por que não ampliarmos esta oferta tão importante pelo resto do país?

As crianças mais pequenas aguardam pela Música.

Be careful what you teach.
It may be learned.
H. C. Froehlich

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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