O Animal de Isabela Figueiredo: “Passear um cão preso à trela não é passeá-lo”

Conhecê-los é conhecer a relação que têm com os animais. A escritora e jornalista Isabela Figueiredo adoptou Serra, a cadela que gosta de mostrar quem manda, e a enérgica Marisol.

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Isabela Figueiredo e Marisol Isabela Figueiredo
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"A Serra foi-me apresentada pela proprietária de um hotel canino onde eu deixava uma outra cadelinha que morreu durante a pandemia. A Ninah. A senhora disse-me que a Ninah não gostava de estar sozinha. Falou-me da Serra, uma cadela recolhida por uma associação de protecção a animais, que tinha acabado de sair do veterinário, após múltiplas cirurgias para recuperar de uma situação grave de maus tratos. Tinha vindo da Serra da Arrábida, daí o nome. Quando a vi estava coberta de feridas abertas e cicatrizes e tinha medo de qualquer pessoa. Senti de imediato uma grande necessidade de a proteger, embora soubesse que tinha um enorme trabalho de recuperação pela frente.

A Marisol apareceu na nossa vida há dois anos. A Serra ficou muito triste após a morte da Ninah. Começou a isolar-se, perdeu o apetite. Procurei rapidamente outra cadelinha que lhe fizesse companhia. O destino levou-me a ver uma ninhada na Charneca da Caparica. A mãe da ninhada era a Marisol, uma cadela sem dono, alimentada pelas pessoas do bairro. Quando a fui ver encheu-me de beijos e decidi adoptá-la. O nome Marisol Tempestade foi-lhe dado por mim e tem a ver com as características dela.

É uma cadela muito atrevida, curiosa, alegre, bem-disposta e descontraída. A Serra é carente, medrosa e insegura, mas desde que a Marisol entrou na nossa vida tornou-se mais assertiva e impõe-lhe respeito. Portam-se as duas muito bem, mas a mais traquina é a Marisol, que adora correr e saltar. Quando vamos para o campo ela galopa como um cavalo. Costumo dizer-lhe que parece um torpedo.

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Marisol Tempestade é descontraída e atrevida Isabela Figueiredo
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Serra veio da Serra da Arrábida Isabela Figueiredo

A Marisol gosta de enterrar bocados de comida que apanha, como por exemplo pão. Digo que está a fazer as suas reservas para o Apocalipse. Como fica com o focinho cheio de terra a cavar os buracos, costumo colaborar no enterramento. Ajudo a cavar e a ocultar para se sujar menos. Penso que ela fica contente, mas posso estar enganada.

Na cidade tornou-se difícil passear com elas, porque passeio-as sem trela. Vejo-me obrigada a procurar lugares onde possam andar em liberdade. É escusado falarem-me em normas urbanas. Tenho cadelas mansas e dóceis que não são uma ameaça para ninguém e que vigio a todo o momento. As normas não estão todas necessariamente certas, para além de que são feitas para privilegiar os interesses humanos e poucas vezes os dos animais. Passear um cão preso à trela não é passeá-lo, é passearmo-nos levando-o preso por uma corrente ambulante, com a obrigação de andar ao nosso ritmo. Privar um animal de interagir através do olfacto, de correr e de andar à solta, é uma forma de violência.

Antigamente, conhecia pessoas com quem estabelecia relações de vizinhança devida aos meus cães. Hoje é impossível. Não posso aproximar-me de outros cães, mesmo que tenha as cadelas com trela. Os tutores afastam-se uns dos outros. Naturalmente, tenho trelas e uso-as perto de estradas ou para as atravessar. Uso-as para as proteger, para poder controlar os seus percursos evitando carros ou outros perigos. Não preciso de as prender por outros motivos. Os meus cães nunca me fugiram. Quem se sente livre não tem necessidade de fugir.

Assino e partilho tudo o que promova o bem-estar, a liberdade e os direitos dos animais. Não apenas domésticos, mas também os selvagens e aves, nomeadamente os pombos, por se terem tornados vítimas. Os animais são inocentes como crianças. Há, aliás, uma grande correspondência de comportamentos entre uns e outros. Quando maltratam um animal o que vejo é o martírio de um inocente sem voz. Não pretendo confundir o não-humano com o humano, mas pretendo que exista um tratamento digno e ético para com os animais. Gostaria que no tempo da minha vida deixassem de ser tratados como coisas, mas essa mudança de paradigma implicará uma revolução global tão abrangente que não acontecerá num curto período de tempo.

Ter a companhia de um animal implica ser paciente e generoso. Não somos donos de um animal, como não o somos de um filho. Somos responsáveis por ele. Se não temos capacidade para tolerar a casa com pêlos e, episodicamente, com urina e excrementos, não vale a pena arriscar. Se não suportamos a ideia de ter objectos pessoais roídos ou arranhados não devemos ter um animal, porque tudo isso acontecerá garantidamente ao longo da vida dele. Tenho casa numa aldeia alentejana e penso ter galinhas, tartarugas, pombos e rolas, gatos e todos aqueles que a vida me trouxer."

Depoimento construído a partir de entrevista por email

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