O primeiro-ministro, a “floresta” e Pedrógão Grande

Antevendo o período estival, o primeiro-ministro fez várias intervenções sobre política florestal, ou melhor, silvícola. Importa analisar o conteúdo das intervenções e as consequências práticas.

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Iniciamos a análise pela “reforma da floresta”. Desde 2016 que afirmamos a debilidade desta iniciativa emblemática governamental, exatamente por não se tratar de uma reforma, mas de uma continuidade do receituário que nos fez chegar onde estamos. Desde 2016 já lá vai mais de meia década, meia década de “reforma da floresta” e o que referem os especialistas? Estamos hoje pior do que estávamos! Nada que não tenhamos publicamente denunciado desde 2016, até perante governantes da altura, em sessão ocorrida na Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. À “reforma” faltou-lhe sempre o básico, seja em termos de medidas, seja em instrumentos de política florestal. Nem era preciso muito esforço, bastaria tão-só adaptar soluções do passado.

Um dos vetores apontados pelo primeiro-ministro para a atual situação é a fraca rentabilidade da “floresta”. E o que têm feito os governos do atual primeiro-ministro a este nível? Pela análise das Contas Económicas da Silvicultura, publicada anualmente pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), não se vislumbra nada de positivo. Depois de uma lenta recuperação entre 2009 e 2019 face a 2000, o valor anual bruto e o rendimento voltaram a decrescer e a estagnar. Ora, a rentabilidade, como bem refere o primeiro-ministro, é fator essencial de uma reforma num país em que a quase exclusividade da propriedade florestal está na posse de entidades privadas e comunitárias.

Todavia, a aposta do Governo tem sido em manter o mercado a funcionar em concorrência imperfeita, dominado pelo sector industrial, um em concreto, que há décadas tem vindo a condicionar os preços à produção. A formação dos preços há muito está condicionada e a regulação prima pela ausência. A aposta do primeiro-ministro, por ação ou omissão, não tem sido na rentabilidade da “floresta”, mas na distribuição de dividendos das sociedades anónimas industriais. O que importa realçar é que este não é só um problema dos proprietários florestais. O problema da falta de expetativas leva ao abandono da gestão e essa, pelo impacto nos incêndios, vitima-nos a todos, aquém e além-fronteiras. Tem impacto na saúde pública!

Os dados do INE revelam ainda uma crescente aposta na produção de madeira para trituração, a de menor valor acrescentado e a de ciclo curto no sequestro de carbono. Ou seja, para além do menor valor, os bens produzidos com madeira triturada têm, em geral, um período de vida útil muito curto. Rapidamente o carbono sequestrado pelo arvoredo abatido é devolvido à atmosfera. Não tem havido capacidade ou competência governamental para alavancar subsectores silvo-industriais de maior valor acrescentado para o país. Pode ser propositado!

Desde 2016 que tem aumentado a pressão industrial para procura de material lenhoso, sobretudo para o setor “bioenergético”, que as celuloses também dominam, através de inúmeros licenciamentos, sem ter em conta a sustentabilidade dos recursos florestais. Os incêndios favorecem essa procura. Curiosamente, nem esse absurdo acrescimento da procura se refletiu em melhor preço e melhor gestão pela oferta. Não é público o impacto dessa pressão no coberto arbóreo, ou mesmo na desflorestação no país. A situação da desflorestação está registada entre 1995 e 2010. Está oficialmente registada uma ligeira recuperação entre 2010 e 2015, sobretudo por eucaliptal. Todavia, apesar de Portugal ter registado a maior área ardida absoluta da União Europeia em 2016, 2017 e 2018, e de permanecer no “ódio” em anos subsequentes, o Governo optou por só realizar o próximo Inventário Florestal Nacional em 2025. Se for como o último, de 2015, com resultados finais só em 2019, entende-se a fixação do primeiro-ministro por 2030. Entende-se, mas não é aceitável!

No que respeita a medidas pós-2017, depois de uma “atualização” dos programas regionais de ordenamento florestal (PROF), as metas das anteriores versões dos PROF tinham sido suspensas por decreto em fevereiro de 2011 (impunham muitas restrições territoriais à expansão do eucaliptal), a agulha governamental mudou e a nova aposta passou a ser nos programas de recuperação e gestão da paisagem (PRGP). Tal como aconteceu com as zonas de intervenção florestal (ZIF), com a aposta atual nas áreas integradas de gestão da paisagem (AIGP). A criativa e o ziguezaguear governativo chegam a surpreender. Em todo o caso, dos PRGP, um está em vigor, o de Monchique, e há vários engavetados.

Também foi público o desagrado das celuloses por estes instrumentos territoriais. Advogam que não há “rentabilidade” para além do eucaliptal e parece que há PRGP que incidem na redução da área contínua de eucaliptal em regiões de maior perigosidade de incêndios. Quais “mosaicos”, quais “descontinuidades”? O facto é que são validados todos e quaisquer pedidos de replantação de eucalipto, nem se analisa o que já existe no terreno. Isto, para além da ausência de fiscalização sobre as plantações ilegais. Ausência propositada?

Para além da falta de regulação dos mercados (sabemos quem ganha com o facto), não há serviço público de extensão rural, de apoio técnico e comercial a agricultores e produtores florestais, para aumento da rentabilidade das suas explorações e redução de risco para a sociedade. O campo está aberto aos serviços de extensão das celuloses, que chegam a anunciar rigor em fraude constatada.

Já falta espaço para abordar o cadastro da propriedade rústica, em “obra de Santa Engrácia”, ou a ausência de fiscalidade ajustada à silvicultura, onde a posse é favorecida e o rendimento é penalizado. Nem para a extrema debilidade dos instrumentos financeiros públicos, face às necessidades de “transformação da paisagem” e à adoção de novos modelos de produção, mais ajustados à atual realidade ecológica e climática atual.

É mais fácil ao primeiro-ministro anunciar em Pedrógão Grande que devemos estar preparados para mais catástrofes associadas aos incêndios, já que não há capacidade, competência ou vontade efetiva em reduzir esse perigo. É-lhe mais fácil atirar as “culpas” para as alterações climáticas, face à falta de vontade em “mexer” no território. Não está esquecido um patrocínio industrial à Presidência Portuguesa do Conselho Europeu. Não é público se houve ou não contrapartidas desse patrocínio. Aliás, deveras questionável. Nem está esquecido de quem o primeiro-ministro se fez rodear logo no início da sua governação, alimentando o efeito das portas giratórias entre a governação e as celuloses.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico

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