Na Justiça, “small is beautiful

Há que dizê-lo, somos um coletivo profissional que se compraz na retórica, que prefere o rondó ao texto enxuto, que adora relevos barrocos.

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Processos arquivados. A extensão das peças processuais está em discussão Jose Fernandes
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Não pertenço ao “jet set” do judiciário que assinou a “Carta aberta” contendo um “Manifesto contra a prolixidade na justiça penal”, iniciativa que se pretende seja uma chamada à reflexão, de todos os profissionais da justiça, “para acabarem com essa cultura de excesso, de desperdício de energias e de tempo, voltando a dar às peças processuais a forma e a concisão que antes eram seu apanágio”.

Foi útil chamar publicamente à atenção de todos os profissionais da Justiça para a incompreensível e desnecessária extensão de peças processuais do penal, mesmo porque algumas chegam a tocar o ridículo. A utilidade informática copy/paste fez disparar a tendência.

Duvido é que da simples reflexão, resultem a breve prazo, resultados práticos, pois como salientou um dos ilustres subscritores numa rádio, a prolixidade constitui um problema cultural que no seu entender demanda discussão em colóquios nas escolas de Direito e forte proatividade pedagógica do CEJ, dos Conselhos Superiores e das Ordens.

Não rejeito a solução referida, mas temo que a discussão, a ocorrer, seja ela mesma apenas um vazadouro da nossa conhecida eloquência, onde todos elencam causas, mas poucos propõem soluções práticas. Há que dizê-lo, somos um coletivo profissional que se compraz na retórica, que prefere o rondó ao texto enxuto, que adora relevos barrocos. O que não admira, porque descendemos de uma variedade étnica desproporcional à dimensão do território; suevos, visigodos, celtas, judeus e árabes, são nossos antepassados e à sua herança social acresce a herança romana e qualquer coisa dos fenícios. Mais tarde velejámos para oriente, deslumbrámo-nos com a exuberância dos sultões e dos marajás e quisemos copiá-los. A miscelânea sócio-cultural que herdámos, talvez nos tenha incutido uma propensão para a comparação e a saliência, característica que medra com facilidade nas profissões jurídicas, onde a erudição é a pedra de toque distintiva.

Eça de Queirós, também jurista, exorbita deste grupo, tanto por dom pessoal, como porque enveredou por outras profissões. Exímio cultor da síntese, da concisão, da brevidade, qualidades que esmerou em toda a sua obra, nela encontramos constantes exemplos. Em O crime do Padre Amaro chega a ser direto na promoção dos estilos, na passagem em que um médico aconselha um jovem que o havia procurado para que lhe ouvisse relato dramático, a ser breve e claro; mas, já que ser “breve e claro é para génios”, exigiu-lhe, ao menos, brevidade.

As diferentes personagens femininas dos seus romances são modeladas com rigor e plasticidade cinematográfica, seja na descrição física, seja na caracterização psíquica. Defeitos como a velhacaria e o beatério de frustração, são descritos em frases curtas, mas impressivas. Uma das mais execráveis velhas queirosianas é a tia Patrocínio das Neves, de A Relíquia, que não admitindo a ninguém a mínima “relaxação”, exalava “um cheiro acre e adocicado a rapé e a formiga” enquanto garantia precocemente a proficiência do sobrinho em doutrina cristã. Rever Eça e as características do seu estilo nas escolas de direito e na formação das profissões do judiciário, talvez fosse útil ao treino de uma indispensável capacidade de síntese.

Ora, voltando às soluções possíveis para acabar de vez que a prolixidade narrativa e justificativa das peças processuais penais, ocorrem-me soluções diferentes e concretas para acusações e sentenças, sem postergar a eliminação da cultura de excessos proposta na “Carta”, pela via da auto-censura.

Sabe-se que os excessos da fase acusatória ocorrem quase exclusivamente nos casos de megaprocessos respeitantes a criminalidade dita económico-financeira, onde se inclui a corrupção e o branqueamento.

A experiência demonstra que grande parte das acusações desses processos transcrevem o relatório policial elaborado no final das investigações e até os relatórios intercalares.

Pois bem, a solução é simples e a lei acolhe-a: acabe-se com os megaprocessos e determine-se às diferentes entidades policiais que elaborem relatórios breves, apenas enunciantes, expurgados de deduções pessoais e de quadros excessivos, como impõe o art.º 253 n.º1 do CPP.

Mas como a eficácia da Justiça não pode depender da vontade de magistrados e investigadores em sacudir de si mesmos o mau hábito do excesso, uma recomendação hierárquica, de quem tenha esse poder, no sentido de induzir o cumprimento, tout court, das normas aplicáveis, seria bem-vinda!

A acusação vai balizar e influenciar todas as fases processuais seguintes, pelo que deve conter apenas os elementos determinados na lei, numa narrativa factual concisa, do que seja subsumível na incriminação a imputar ao acusado, visando a discussão em julgamento.

Por outro lado, as provas não são para descrever na acusação, pois não constituem factos do ilícito imputado e sim a sua comprovação.

No julgamento, sendo a prova gravada, a fundamentação da decisão de facto não carece de batalhões explicativos. Igualmente dispensáveis, porque inúteis, são citações doutrinais da teoria geral da infração penal e elencos de jurisprudência.

Já na tramitação de recursos há margem para abolir atos e teores redundantes, sem diminuir garantias de defesa e o segmento conclusivo da tese recursória poderia e deveria ter um limite legal de articulados.

Nos acórdãos dos tribunais superiores, a síntese da insurgência e do seu contraditório, dispensa as transcrições integrais. A decisão final será o trecho que evidencia a excelência do julgador, quando a conjugação dos fundamentos lógico-jurídicos de onde há-de emergir, for justa e concisa.

Recentemente, em Istambul, num congresso profissional, troquei impressões com magistrados de várias nacionalidades sobre procedimentos, volume processual, etc. Uma juíza turca de um tribunal de 2.ª instância, área laboral, contou que decidia um mínimo de 15 processos por semana, o mesmo fazendo os seus pares. E que não se tratava de nenhuma imposição superior, antes uma disciplina pessoal para dar resposta ao elevado volume de processos distribuídos. Curiosa, perguntei-lhe quantas páginas, em média, escrevia por cada sentença: três, máximo cinco, foi a resposta. Também perguntei sobre a extensão descritiva das peças dos advogados e respondeu-me que algumas, poucas, se alongavam por “excessivas vinte páginas” embora, no geral não passassem de duas ou três. Ou seja, num país de oitenta milhões de habitantes, a capacidade de síntese impõe-se naturalmente. Nós somos menos, mas sendo elevado o número de causas a nosso cargo, dispensaríamos bem a inutilidade e a redundância para ganhar em tempo e qualidade.

A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico

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