Dizer que o Mundial no Qatar foi neutro em carbono é “falso e enganador”

A Comissão Suíça para Justiça na Comunicação Comercial ordenou à FIFA, que tem sede em Zurique, que parasse de descrever o Mundial de futebol de 2022 como “neutro em carbono”.

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O Qatar garantiu que o Mundial de futebol de 2022 seria “o primeiro neutro em carbono”, mas a promessa ficou por cumprir, garantem ambientalistas Reuters/FABRIZIO BENSCH
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O Qatar garantiu que o Mundial de futebol de 2022 seria “o primeiro neutro em carbono”. E a FIFA deu grande ênfase à promessa do país organizador do campeonato. Agora, a Comissão Suíça para Justiça na Comunicação Comercial​ (SLK, na sigla em alemão) ordenou à FIFA, que tem sede em Zurique, que parasse de associar o evento a esta afirmação “falsa e enganadora”. A decisão, contudo, não é juridicamente vinculativa.

“Esta decisão impressionante vem pressionar a FIFA, mas, acima de tudo, vem alertar todos os organismos desta natureza, e também à escala nacional, que é preciso um esforço sério de redução de emissões, sem invenções. Portugal, que está envolvido com Espanha e Marrocos na candidatura ao Campeonato do Mundo de Futebol de 2030, deve aprender com estes cartões vermelhos para que possa ir honestamente a jogo”, afirma ao PÚBLICO Francisco Ferreira, presidente da associação ambientalista Zero.

A decisão, descrita como “histórica”, teve origem numa queixa apresentada por vários representantes da sociedade civil, incluindo a organização sem fins lucrativos Carbon Market Watch, da qual faz parte a associação portuguesa Zero.

“A decisão valida as descobertas da nossa investigação, que concluiu que a alegação de neutralidade de carbono da FIFA era exagerada e enganosa, enviando um sinal poderoso de que reivindicar a neutralidade de carbono não é uma prática promocional ou publicitária válida”, afirma ao PÚBLICO Khaled Diab, director de comunicação da Carbon Market Watch.

A queixa foi apresentada em Novembro de 2022 pela Associação de Defesa do Clima (França) em nome da Alliance Climatique (Suíça) e de cinco outras organizações europeias (a Carbon Market Watch, da Bélgica; a Notre Affaire à Tous, da França; a New Weather Institute, do Reino Unido; e, por fim, a Fossil Free Football e a Reclame Fossielvrij, dos Países Baixos). As entidades já haviam apresentado queixas nos respectivos países de origem, reclamações que foram redireccionadas para a Suíça.

“Esperamos que isto desencoraje a FIFA, assim como outros organizadores de eventos desportivos internacionais, de marcar outro golo contra o clima com uma acção de greenwashing tão ultrajante. Em vez disso, a FIFA e os organizadores de outros eventos desportivos globais devem encontrar soluções reais para reduzir o impacto climático e ecológico dos eventos. Precisamos com urgência de que o desporto internacional se torne verdadeiramente sustentável”, refere Khaled Diab, numa resposta enviada por e-mail.

Contabilização criativa de emissões

Os argumentos apresentados na queixa ancoram-se em dados de uma investigação da Carbon Market Watch sobre as promessas de neutralidade carbónica. O relatório, com data de Maio de 2022, refere que a alegação “exagerada” da FIFA resulta, por exemplo, de um cálculo subestimado das emissões de gases com efeito de estufa associadas à construção dos estádios.

“Tal foi possível através de uma manobra de contabilização criativa das emissões, em que apenas foram consideradas as emissões associadas a algumas semanas, quando o alegado tempo de vida dos estádios do campeonato é de 60 anos, ainda que seja muito improvável que estes estádios, construídos especificamente para este evento, conheçam uma utilização optimizada no futuro”, lê-se num comunicado divulgado nesta terça-feira pela Zero.

As entidades queixosas também argumentam que é “impossível” que um evento desportivo anule o impacto climático por meio de compensações de carbono. Isto porque os créditos de carbono utilizados estão associados a projectos de energias renováveis que, entretanto, já não estão previstos pelos organismos que regulam o mercado de carbono. Como tais projectos já se tornaram viáveis do ponto de vista económico, não faz sentido que sejam financiados com créditos de carbono.

“Talvez por isso tenha sido criada uma nova norma especificamente para o evento, no âmbito do Global Carbon Council, o que levanta questões sobre a credibilidade e a independência deste sistema de certificação”, acrescenta a nota da Zero.

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O estádio Lusail, em Doha, é o maior do Qatar e foi construído para o Mundial de Futebol

A Zero também sublinha o facto de a FIFA se ter comprometido a adquirir e usar créditos de carbono suficientes para cobrir a totalidade de emissões do Campeonato do Mundo. Mas, garante a associação, a promessa não foi cumprida até agora.

“Agora que o mundo já não está a assistir, a FIFA deixou cair no esquecimento a sua promessa de compensar toda a pegada de carbono do Campeonato do Mundo, minando a sua própria afirmação questionável”, refere a Zero no documento.

Segundo os queixosos, a FIFA utilizou créditos que equivalem a cerca de 1,1 milhões de toneladas de emissões de dióxido de carbono. Ou seja, menos de um terço do valor total estimado (mas “subavaliado”, nas contas da Carbon Market Watch) da pegada carbónica do evento, que seria de 3,6 milhões de toneladas de dióxido de carbono.

“Além disso, a FIFA anunciou tardiamente que iria compensar metade do impacto climático do Campeonato do Mundo através de reduções de emissões conseguidas por uma central de energia solar. No entanto, este projecto não está registado em nenhuma norma do mercado de carbono existente e, por conseguinte, não gerou quaisquer créditos de carbono”, acrescenta a Zero.

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