Qatar: um Mundial “neutro em carbono” ou o Mundial do greenwashing?

Números polémicos no que toca às emissões dos estádios, gastos tremendos de água para a relva resistir ao calor... O Qatar prometeu um Mundial amigo do ambiente, mas pode não estar a cumprir.

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O Mundial de 2022 acontece entre os dias 20 de Novembro a 18 de Dezembro ABIR SULTAN/EPA

Quando, em 2010, o Qatar foi escolhido para acolher o Campeonato do Mundo de 2022 (20 de Novembro a 18 de Dezembro), o país afirmou que organizaria “o primeiro Mundial de futebol neutro em carbono”. Um evento é neutro em carbono quando não é prejudicial para o ambiente (ou quando tem um impacto apenas residual). É mesmo possível um torneio destes, que mobiliza tantas pessoas e implica a construção de tantas infra-estruturas, ser neutro em carbono? A associação sem fins lucrativos Carbon Market Watch diz resolutamente que não. E acusa a FIFA de estar a difundir números que subestimam grandemente as emissões de gases com efeito de estufa (GEE) que a competição já provocou — numa altura em que a bola ainda nem começou a rolar.

A estratégia do Qatar para ter um Mundial supostamente neutro em carbono assentava em dois grandes pilares. Primeiramente, o país faria os possíveis para construir estradas, hotéis, estádios e demais infra-estruturas de forma sustentável. Num segundo momento, investiria em “projectos verdes”, que a longo prazo permitissem sequestrar dióxido de carbono (CO2) e, assim, compensar as emissões decorrentes do Mundial.

Em Junho do ano passado, um relatório da FIFA indicou que, ao todo, a prova deverá resultar na emissão de 3,63 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente. Este número engloba não só os dias da competição em si, mas também os anos de preparação para a acolher. Ou seja: estão incluídas nas fontes de emissões não apenas as viagens de atletas e adeptos, como também a construção de recintos e edifícios diversos.

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Sete dos oito estádios onde o Mundial se jogará foram construídos de raiz MARKO DJURICA/Reuters

Mas a FIFA sustenta que as viagens resultarão em mais de metade (51,7%) das emissões associadas ao torneio, atribuindo à construção dos estádios — seis permanentes e um temporário, que pode ser desmontado e transportado para outros territórios — uma percentagem bem mais baixa (18%). Segundo a Carbon Market Watch, que em Maio deste ano produziu uma análise para ver quão credível era a promessa de que este seria um Mundial neutro em carbono, este último número é enganoso.

A associação sem fins lucrativos destaca que, no que concerne à construção dos estádios permanentes, o que os organizadores do Mundial fizeram para calcular as emissões pelas quais são responsáveis foi dividir os dias da competição pelo tempo de vida estimado dos estádios.

“A FIFA acha que, como os estádios deverão durar 60 anos, o Mundial só tem de se responsabilizar pelas emissões relativas ao mês em que vai acontecer. O que se fez, portanto, foi considerar-se apenas uma fracção reduzida do valor total”, explica ao PÚBLICO Gilles Dufrasne, autor principal da análise. Segundo as contas deste investigador, a construção destes estádios terá resultado na emissão de 1,6 milhões de toneladas de CO2 equivalente — e não 0,2 milhões de toneladas, como sugere a FIFA.

“Criatividade contabilística”

Pedro Nunes, da associação ambientalista Zero, define este como um caso de “criatividade contabilística”, que só poderia fazer sentido se houvesse razões fortes para se pensar que, após o Mundial, os estádios seriam usados com relativa regularidade. Já se sabe que o Qatar organizará a edição de 2023 da Taça das Nações Asiáticas, mas e depois disso? “Custa a crer que, num país que não chega a ter três milhões de habitantes, os estádios terão uma utilização assim tão significativa.”

Quanto ao estádio temporário — o Estádio 974, construído a partir de material reciclado ou reciclável (974 contentores destinados ao transporte de mercadorias) —, há quem o veja como um dos pontos centrais da dita estratégia de sustentabilidade deste Mundial, mas ele também levanta algumas questões. Por um lado, “se estádios de competições anteriores puderem ser transportados e reutilizados, podemos ter menos construção de estádios no futuro”, destaca positivamente a Carbon Market Watch na sua análise.

Por outro, frisa a mesma associação sem fins lucrativos — aqui olhando para os próprios números da FIFA —, foi cerca de 60% mais penoso para o ambiente construir este estádio do que os permanentes. O motivo prende-se com “a utilização de materiais mais resistentes, que permitam múltiplas operações de desmantelamento e remontagem”.

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Estádio 974 MARKO DJURICA/Reuters

Estas “múltiplas operações” são necessárias para a construção do estádio fazer sentido, ambientalmente falando. Se, hipoteticamente, o recinto for transportado “uma única vez”, e ainda por cima para uma localização muito distante da actual, então o impacto de construir dois estádios “provavelmente será mais reduzido”, reflecte a Carbon Market Watch.

O Qatar ofereceu-se para, após este Mundial, “transferir” o Estádio 974 para o Uruguai, que quer co-organizar a edição de 2030 da prova, mas só em 2024 é que a FIFA escolherá o anfitrião. Fora isso, ainda não se conhecem possíveis planos futuros para o estádio — que, no Mundial que se avizinha, receberá o primeiro jogo de Portugal (dia 24, frente ao Gana).

Água: um gasto diário brutal

Seis dos oito estádios onde o Mundial se jogará ficam em Doha, a capital. A distância mais longa entre estádios ronda os 60 quilómetros (entre o Al Bayt e o Al Janoub), o que, para os adeptos, torna as deslocações mais curtas do que o normal.

Isto joga a favor do Qatar, mas o país, onde até no Inverno faz calor, tem tido de consumir imensa água (e energia) para manter a relva dos campos em boas condições.

Para que possam resistir às temperaturas desérticas, os relvados são refrigerados e regados com água dessalinizada (a dessalinização é, energeticamente, um processo muito dispendioso). Além dos oito estádios (que estão apetrechados com sistemas de ar condicionado que a organização diz serem eficientes), há ainda 136 campos de treino. Haitham Al Shareef, engenheiro civil sudanês que está a cuidar destes relvados, disse no início deste ano à agência Reuters que cada um requer 10 mil litros diários de água dessalinizada no Inverno e 50 mil litros diários no Verão.

Acresce a este grande gasto o facto de, ainda segundo a Reuters, o Qatar importar anualmente “140 toneladas de sementes de relva” oriundas dos Estados Unidos, que atravessam o Atlântico em aviões climatizados.

O Qatar, apesar das promessas, não convence os ambientalistas, que criticam o país por ter sequer sugerido que conseguiria organizar um Mundial neutro em carbono. “Basicamente, a organização incorreu em greenwashing, em publicidade enganosa. É grave, porque faz o público, ou um sector do público, pensar que é possível organizar-se um evento desta magnitude sem se ter um impacto ambiental significativo”, defende Gilles Dufrasne.

“Era difícil imaginar como é que um grande produtor de petróleo organizaria um evento neutro em carbono”, refere, por seu turno, Pedro Nunes. “Anteviu-se, desde o princípio, que poderia haver aqui uma boa dose de propaganda ambiental. Infelizmente, os resultados estão à vista.”

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