Acção climática: multinacionais a procrastinar e empresas na UE sem planos credíveis

Duas análises publicadas por organizações sem fins lucrativos reforçam ideia de inacção climática nas empresas. Em 1500 empresas europeias menos de 5% têm planos credíveis para baixar emissões.

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As grandes empresas europeias e globais estão a falhar em matéria de acção ambiental, concluem duas análises divulgadas esta semana Nuno Ferreira Santos

Dois relatórios divulgados esta semana apresentam conclusões idênticas e que não são de hoje: as grandes empresas europeias e globais estão a falhar bastante em matéria de acção ambiental. A primeira análise refere que muitas multinacionais que dizem estar na linha da frente no que tem que ver com transição climática estão a procrastinar e são, na verdade, pouco transparentes e pouco íntegras. Já a segunda rotula como pouco credíveis as estratégias de mitigação de centenas de empresas europeias que dizem tencionar reduzir a sua pegada ecológica. De quase 1500 destas empresas, menos de 5% terão planos credíveis para conseguir atingir este objectivo.

O estudo que olha para a transparência (ou eventual falta dela) de gigantes como a Amazon, a Apple, a Google, a Mercedes, a Nestlé e a Pepsi, por exemplo, saiu esta segunda-feira, tendo sido feito pelo think tank NewClimate Institute e pela associação sem fins lucrativos Carbon Market Watch. Juntas, estas organizações, que este ano repetem a mesma análise que fizeram em 2022, esmiuçaram os relatórios de sustentabilidade e também as promessas ambientais de 24 grandes empresas, de vários sectores diferentes — da mobilidade à moda, passando pela tecnologia, pelo sector dos supermercados e pela indústria pesada (aço e cimento).

Estes 24 tubarões dos seus respectivos mercados retratam-se como sendo líderes em matéria de ambição ecológica. Mas o que a NewClimate Institute e a Carbon Market Watch dizem é que, para começar, muitos deles estarão a estabelecer metas climáticas até 2030 contabilizando apenas uma parcela incompleta das suas emissões de gases com efeito de estufa (GEE). Estarão a deixar de fora quantias relevantes de emissões que, não decorrendo da actividade directa das empresas, não deixam de estar ligadas àquela que é a sua cadeia de valor.

O relatório frisa também que é em parte por causa da sua confiança em compensações de carbono que estas empresas estão a dizer que reduzirão drasticamente as suas emissões até 2030.

Ora, muitos ambientalistas opõem-se à compra de créditos de carbono, adquiridos com recurso a investimentos em projectos de plantação de árvores e outras iniciativas “verdes”. Por um lado, só daqui a muitas décadas é que uma floresta plantada agora conseguirá capturar o dióxido de carbono (CO2) que está a ser emitido neste momento. Por outro, existe sempre o risco de reversão: com um incêndio, por exemplo, todo o CO2 sequestrado pode regressar à atmosfera.

“Além disso, aquilo que temos vindo a perceber, cada vez com mais clareza, é que os planos das grandes empresas para compensar as suas emissões requerem mais espaço de terra do que aquele que está disponível, com grandes implicações para a biodiversidade e segurança alimentar, sobretudo quando estão em causa projectos de (re)florestação”, refere a associação ambientalista Zero (que costuma trabalhar com a Carbon Market Watch) num comunicado de imprensa sobre o relatório.

Pouca integridade, diz análise

Os autores da análise escrevem que, uma vez calculada a totalidade da pegada carbónica, as empresas com metas para 2030 só deverão conseguir, em média, reduzir as suas emissões totais em 15%. É uma percentagem magra, tendo em conta que, segundo o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC), temos de baixar as nossas emissões em pelo menos 43% até ao final desta década.

Dada a discrepância entre este valor aquém do necessário e aquele que tende a ser o discurso destas multinacionais, o relatório avaliou o seu nível de “integridade”. Nenhuma das 24 obteve a pontuação correspondente a “integridade alta”. E apenas uma — a gigante do transporte marítimo Maersk — foi descrita como tendo uma “integridade razoável”.

As restantes multinacionais ficaram numa de três categorias: “integridade moderada” — a Apple, a ArcelorMittal (sector do aço), a Google, a H&M, a Holcim (materiais de construção), a Microsoft, a Stellantis (indústria automóvel) e a Thyssenkrupp (siderurgia) — e “integridade baixa” ou “muito baixa” (as restantes empresas avaliadas).

“Este relatório expõe uma grave procrastinação por parte de multinacionais que não só têm um grande impacto no planeta, como dispõem de uma grande disponibilidade de meios para reduzir a sua pegada carbónica”, lamenta, no seu comunicado, a Zero.

“As empresas, em alguns casos, ainda não assimilaram que para elas é uma vantagem se estiverem no pelotão da frente” na corrida rumo à redução drástica de emissões, diz ao PÚBLICO Pedro Nunes, desta associação ambientalista. “Estamos ainda num processo de inércia e até alguma negação”, completa, dizendo que as grandes multinacionais passaram anos a operar “num mercado que não tinha em conta os bens ambientais”. “Essa cultura ainda está a deixar lastro”, acredita.

Mais seriedade” a calcular emissões e monitorização mais eficaz

Este especialista em política pública diz que as empresas precisam de ser mais “sérias” a contabilizar as suas emissões. Têm, também, de as monitorizar eficazmente, frisa.

Esta monitorização, prossegue, “tem de ser não só rigorosa, como escrutinável”. Isto é, deve ser levada a cabo através de “uma metodologia que seja publicada e eventualmente esteja certificada”. Assim, diz Pedro Nunes, os especialistas independentes poderão saber concretamente como é que as empresas estão a fazer os seus cálculos e tudo será mais transparente.

No início deste ano, entrou em vigor uma directiva europeia que vai apertar as regras sobre as informações que as empresas têm de divulgar sobre os impactos ambientais da sua actividade. A nova legislação garantirá a “investidores e outras partes interessadas o acesso às informações de que precisam para avaliar os riscos de investimento decorrentes das alterações climáticas e de outras questões de sustentabilidade”, explica a Comissão Europeia. Pedro Nunes considera que esta directiva será “bastante importante” para melhor regular a actividade cooperativa.

A “pressão” dos investidores é importante

O segundo dos dois relatórios mencionados neste texto foi publicado esta quinta-feira e resulta de uma parceria, mais uma, entre a organização sem fins lucrativos CDP e a consultora Oliver Wyman.

Todos os anos, a CDP envia um questionário a milhares de empresas. Ele é composto por uma extensa lista de perguntas sobre os seus impactos ambientais (e também as suas metas climáticas). Agora, a organização e a Oliver Wyman fizeram uma análise das respostas que receberam em 2022 de 1495 empresas europeias.

O relatório indica que 49% destas empresas dizem ter planos de adaptação climática que estão alinhados com a meta do Acordo de Paris — isto é, o objectivo de não deixarmos que o aumento da temperatura global bata os 1,5 graus Celsius em relação aos valores pré-industriais. No entanto, só menos de 5% é que estarão efectivamente a montar uma estratégia consistente e credível.

“Precisamos que as empresas façam planos de transição completos e credíveis. E precisamos também que os investidores exijam mais e mais das multinacionais. Os investidores têm uma influência que não pode ser esquecida”, diz ao PÚBLICO Laurent Babikian, da CDP.

A CDP definiu como empresas possuidoras de planos de adaptação climática credíveis aquelas que, pelas suas respostas à organização, demonstraram ter metas para reduzir todas as suas emissões (tanto as directas como as indirectas) e, além disso, responderam com informação relevante a pelo menos 14 de 21 questões que a CDP considera serem fundamentais.

A organização chama-lhes “indicadores-chave” e estes cobrem elementos como a identificação de riscos e oportunidades decorrentes do actual cenário de crise climática, o planeamento financeiro das multinacionais e a maneira como elas se relacionam com os processos de formulação de políticas climáticas.

“Por que motivo é que não considera que a sua empresa esteja exposta a riscos que estão relacionados com o clima e podem ter um impacto financeiro significativo?” “Providencie detalhes sobre as suas metas absolutas de emissões e o progresso até agora feito para as atingir.” “Indique o estatuto de verificação ou garantia que se aplica às emissões por si reportadas.” Estes são apenas três exemplos das questões que estes 21 indicadores compreendem.

O relatório enfatiza que, embora centenas de empresas digam querer descarbonizar as suas operações e ajudar o mundo a cumprir com o Acordo de Paris, só menos de 5% é que, através das informações partilhadas com a CDP, demonstraram ter em marcha um conjunto de acções específicas para reduzir o seu impacto ambiental de forma realmente significativa.

Cerca de 30 a 45% das multinacionais estarão ainda a “desenvolver” estratégias climáticas mais robustas: responderam de forma que a CDP considera ser interessante a pelo menos 50% dos tais “indicadores-chave” — sendo que, para já, a sua ambição climática permanece mais alinhada com uma meta de dois graus Celsius do que com a de 1,5 graus. Há ainda muito progresso a fazer.

A maioria das empresas, ou os restantes 50%, caíram na categoria de progresso “limitado”.

Um pouco como Pedro Nunes, Laurent Babikian também acredita que a nova directiva europeia vai ser importante. As empresas, diz, “serão, cada vez mais, obrigadas a ter e explicar muito bem os seus planos de acção climática”, com mais do que uma meta final — se uma multinacional quer atingir um certo objectivo climático até 2050, por exemplo, “temos de saber como é que ela vai progredir gradualmente até lá chegar”.

O especialista também acha que as empresas que estão mais avançadas no processo de acção climática sairão, depois, beneficiadas. “As que ainda não estão comprometidas com a transição, eventualmente, vão perder a capacidade de se antecipar — e isto custará caro.”

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