Portugal enfrenta difícil desafio na indústria do cimento com CO2 duro de remover

Indústria tem emissões que derivam de processos químicos indispensáveis. Em Portugal, procuram-se soluções no hidrogénio, nos créditos de carbono e em outros projectos de investigação e inovação.

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Uma das fábricas da cimenteira Secil daniel rocha

A União Europeia quer atingir a neutralidade carbónica até 2050. Por outras palavras, tem pouco menos de 30 anos para fazer com que o balanço entre o dióxido de carbono (CO2) emitido pelos Estados-membros e o CO2 removido da atmosfera (graças, por exemplo, às florestas) comece a ser nulo. Isto exige uma grande adaptação por parte das indústrias mais poluentes — indústrias como a do cimento, para a qual atingir a neutralidade carbónica é um desafio particularmente complexo. Em Portugal, o sector está a mexer-se e há projectos em curso que procuram soluções para esta missão, que envolve CO2 duro de remover.

O sector do cimento é responsável por cerca de 8% das emissões de CO2 a nível global, de acordo com o Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC). Trata-se de uma indústria cujas emissões são “difíceis de abater”, dado que a sua pegada carbónica não vem apenas da queima de combustíveis fósseis (que podem ser substituídos por fontes de energia alternativas). Vem também do próprio processo químico que se dá​ no interior das fábricas.

O ingrediente principal do cimento é o clínquer, pequeno material granular que resulta da calcinação sobretudo de calcário, mas também de argila e de componentes químicos como alumínio e ferro. A calcinação consiste no aquecimento prolongado de um material a temperaturas extremamente elevadas (no caso da indústria cimenteira, mais de 1450 graus Celsius). No que ao calcário diz respeito, ela corresponde à transformação de carbonato de cálcio (CaCO3), o seu principal componente, em cal virgem (CaO). Isto envolve a libertação de CO2.

Ou seja: o ingrediente principal do cimento é obtido através de um processo que liberta CO2 para a atmosfera. Segundo o IPCC, mais de 50% das emissões do sector do cimento vêm desta reacção química.

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Uma das fábricas da cimenteira portuguesa Secil Daniel Rocha

“Não há cimento sem clínquer. O clínquer é fundamental para dar ao cimento as suas propriedades físico-químicas, que naturalmente são muito importantes: o cimento tem de responder a uma data de resistências e pesos. Estamos a falar de edifícios, coisas que levam com gente em cima. Um bolo pode ficar mais ou menos doce; um edifício não pode ficar com cimento mais ou menos bom”, resume ao PÚBLICO Rita Prates, da associação ambientalista Zero.

A especialista formada em Engenharia Química salienta, porém, que, se é verdade que não existe cimento sem clínquer, também é verdade que é possível baixar a percentagem deste material na composição química de cimentos, que assim podem ser mais “verdes”.

No seu roteiro para a neutralidade carbónica até 2050, a Associação Técnica da Indústria de Cimento (ATIC), que representa o sector do cimento a nível nacional, assume o compromisso de, até 2030, baixar o “factor de incorporação de clínquer” para 65%. “Neste momento, o nosso cimento tem entre 75% e 78% de clínquer”, diz ao PÚBLICO Otmar Hübscher, vice-presidente da ATIC (e também presidente executivo da cimenteira Secil).

Rita Prates diz que o clínquer pode ser parcialmente substituído por “subprodutos de outras indústrias”, como, por exemplo, as cinzas resultantes da queima de carvão. Sucede que Portugal acabou com a produção de electricidade a partir do carvão no final de 2021. “Enquanto tivemos centrais, a indústria cimenteira usava essas cinzas. Agora elas fecharam, porque são poluentes. Ainda há cinzas armazenadas, mas em breve esta matéria-prima vai deixar de estar disponível”, refere.

“Pela indústria cimenteira, as centrais a carvão deveriam continuar, porque assim havia esta matéria-prima alternativa. Mas também não podemos olhar só para uma parte do puzzle”, salienta. “Se as centrais a carvão ajudavam um pouquinho o sector do cimento, depois também poluíam muito...”

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Chaminés da antiga Central Termoeléctrica de Sines Diego Nery

A escassez de cinzas é um “desafio”, diz Otmar Hübscher. “Primeiro, é preciso voltar ao ponto zero [isto é, voltar a um ponto em que há disponibilidade de matéria-prima alternativa]​. Só depois é que conseguiremos progredir [no caminho rumo à neutralidade carbónica]”, argumenta.

Outra matéria-prima alternativa: escórias siderúrgicas, que também já foram mais abundantes, segundo diz Paulo Rocha, director de inovação e sustentabilidade da Cimpor. Esta cimenteira pretende, no futuro,​ substituir as cinzas e escórias siderúrgicas por argilas calcinadas. Estas constituem o principal produto que precisaremos de usar no futuro, para fazer face à escassez de outros”, diz Otmar Hübscher.

Fontes de energia alternativas

A questão do clínquer é a principal no que diz respeito aos desafios envolvendo a descarbonização da indústria do cimento, mas há outras. O recurso a combustíveis fósseis, que são queimados no processo para se obter clínquer, também resulta numa fatia relevante de emissões.

Como mitigar estas emissões? “É possível usar renováveis — e isso já está a ser feito”, diz Rita Prates, referindo que “biomassas, pneus e resíduos urbanos” são exemplos de possíveis combustíveis alternativos. Mas “há aqui alguns entraves”, refere. “Como em Portugal o tratamento de resíduos é tão mau — os resíduos vão mais para aterro ou incineração do que para reciclagem —, estamos a importar lixo para as cimenteiras usarem, o que é ridículo”, diz. “Tem de haver outro tipo de políticas relativamente ao tratamento de resíduos”, enfatiza.

“Hoje o aterro é demasiado barato”, diz Otmar Hübscher. “Enquanto ficar mais em conta mandar resíduos para aterros do que voltarmo-nos para a circularidade — para assim os resíduos poderem ser usados como combustíveis alternativos —, será muito difícil [o sector do cimento reduzir a sua pegada carbónica], opina o vice-presidente da ATIC.

O sector está muito convicto de que, até 2050, o hidrogénio será um substituto viável dos combustíveis fósseis. Hoje o seu preço ainda é muito elevado, e as cimenteiras ainda não dispõem de ​“queimadores que sejam capazes de usar muito hidrogénio”, mas esta fonte de energia será “o futuro, quase de certeza”, diz ao PÚBLICO Carlos Abreu, administrador da Secil.

Paulo Rocha também acredita que, a longo prazo, o hidrogénio será capaz de substituir o coque de petróleo (ou petcoke), o combustível fóssil que a indústria cimenteira mais usa como fonte de energia. No que diz respeito a um futuro mais próximo (até 2030), a Cimpor pretende adoptar outras medidas, como equipar as suas instalações com painéis solares, “investir em recuperação de calor residual para produzir energia eléctrica” e modernizar os seus fornos, aumentando a sua eficiência energética.

Soluções “disruptivas”

Entre 2030 e 2050, a cimenteira tentará recorrer a “tecnologias mais disruptivas”, como o “clínquer de baixo carbono” que está a tentar desenvolver com o Instituto Superior Técnico, em Lisboa.

“São mais ou menos as mesmas matérias-primas, mas combinadas de maneira diferente”, diz Paulo Rocha. “Começámos este projecto com o MIT [Instituto de Tecnologia do Massachusetts, nos Estados Unidos], trabalhámos com eles mais numa base de simulações computacionais. Chegámos a dados interessantes. Agora, há que testar isto experimentalmente.”

Outra solução disruptiva é a aposta em tecnologias de captura, utilização e armazenamento de carbono (carbon capture, utilisation and storage, ou CCUS).

Num projecto de CCUS, o CO2 que deriva da queima de combustíveis fósseis numa instalação industrial tende a ser capturado mal as nuvens de fumo escapam pelas chaminés. A ideia é evitar que o dióxido de carbono seja libertado para a atmosfera. Uma vez separado dos restantes componentes da nuvem de fumo, o CO2 pode ser ou armazenado em formações geológicas profundas, ou então usado para produzir combustíveis sintéticos, por exemplo.

O sector do cimento diz que vai precisar da CCUS, uma tecnologia que ainda não foi muito implementada a larga escala e cujo consumo energético é muito grande, para atingir a descarbonização: mesmo após eliminar os combustíveis fósseis e incorporar matérias-primas alternativas, continuará a ter emissões (associadas ao clínquer) que só com a captura de CO2 poderá eliminar, argumenta.

“Precisamos de um quadro regulatório com apoios a projectos de CCUS”, defende Otmar Hübscher. “Estes processos são caros, mas a tecnologia ainda está a ser testada em primeiros projectos à escala industrial. Daí precisarmos de apoios: precisamos que se invista em investigação e inovação”, diz.

Carlos Abreu também vê a CCUS com bons olhos. “Economicamente, estes processos têm nuances que não são pequenas, mas, por volta de 2026, 2027, a tecnologia deverá estar praticamente madura”, diz, optimista.

Apesar de referir que não pode ainda revelar muitos pormenores, o administrador da Secil (que, tal como a Cimpor, tem um projecto de investigação para desenvolver um “clínquer de baixo carbono”, através de uma “modificação da sua mineralogia”) afirma que a empresa poderá ter um projecto de CCUS numa das suas fábricas num futuro relativamente próximo, talvez “lá para 2026.

Paulo Rocha diz que a Cimpor “gostaria de fazer testes”. E fala sobre a Noruega, onde a cimenteira Norcem está prestes a ter uma “fábrica de captura” de CO2 a funcionar ao lado das suas instalações na cidade de Brevik. Esta “fábrica de captura” é uma de duas que estão a ser construídas no âmbito do Longship, projecto que deverá custar à volta de 25,1 mil milhões de coroas norueguesas (2,4 mil milhões de euros).

O Governo da Noruega é o principal financiador deste projecto — e diz que com ele quer demonstrar que estas tecnologias podem reduzir a pegada carbónica das indústrias mais poluentes.

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Uma experimental "fábrica de captura" de CO2, que está a ser testada na Noruega, no âmbito do projecto Longship Tiago Bernardo Lopes

Mas a CCUS não é consensual. “Ela poderá ser uma chave fundamental para o sector do cimento, mas ainda não está a ser vendida ao desbarato. E também ainda não se acredita que compense”, dado o seu grande consumo energético e não só, avisa Rita Prates.

“O importante é reduzir o CO2 a montante”, entende. “O CO2 é um pouco como o lixo. O ideal não é enviar lixo para aterros — é reduzir a quantidade de lixo que é produzida. O ideal não é pôr CO2 no subsolo — é reduzir ao máximo as emissões.”

Rita Prates tem acompanhado o tema da descarbonização do cimento no âmbito do Ecos. Este projecto, que junta diversas organizações não-governamentais (ONG) europeias, incluindo a portuguesa Zero, está a lutar para promover reduções drásticas no que toca à utilização de clínquer.

Na óptica de Rita Prates, acelerar os testes para dotar o cimento de mais e melhores matérias-primas alternativas é mais importante do que pensar em CCUS — ou mesmo incorrer naquilo que entende como greenwashing.

Em Agosto de 2022, a Secil lançou aquele que vendeu como sendo “o primeiro betão com zero emissões de CO2 em Portugal”. “Quando vi isto a ser anunciado, é óbvio que fiquei curiosa. Mas a verdade é que​ aquele betão, embora​ tenha alguns resíduos reciclados, também ​continua a ter percentagens de clínquer gigantes. Isto continua a ser um betão clássico”, avalia.

A Secil argumenta que este betão é neutro em carbono porque “as restantes emissões serão compensadas através de um programa de compensação de carbono”. Rita Prates responde que a questão das compensações é problemática. “Imagine-se que uma empresa, de modo a compensar as suas emissões de CO2, investe uma determinada quantia de dinheiro em plantação de árvores. Para começar, estas árvores vão demorar anos a crescer (pelo que vão também demorar anos a conseguir captar o CO2 que está a ser libertado neste momento). Depois, há uma outra questão: como é que eu tenho a certeza de que aquela floresta não vai ser queimada, não vai ser cortada para fazer outra coisa qualquer?”

Ainda sobre o facto de considerar que a questão dos créditos de carbono é problemática, Rita Prates diz o seguinte: “Agora, sempre que quiser emitir CO2, não tenho de me preocupar. Podendo comprar emissões, não tenho de perder tempo a fazer cimento mais amigo do ambiente. Para quê? Compro a compensação e não preciso de me esforçar.”

Carlos Abreu tenta defender a Secil das acusações de greenwashing. Greenwashing é quando tentamos esconder algo. Neste caso, estamos a dizer o que vamos fazer. Vamos promover investimento verde”, diz. E acrescenta: “Neutralidade carbónica não é não emitir CO2; é ter um balanço que é zero. A legislação, e bem, criou os créditos de carbono para promover a descarbonização do planeta.​”​

“Para muitas pessoas, o industrial ainda é o vilão, completa. Mas os industriais, mais do que ninguém, querem cumprir tudo o que é lei ambiental.”