A (a)normalidade de ser queer

Ser queer ainda não é normal. Por muito que nos tentemos convencer do contrário, existe todo um conjunto de práticas e crenças a desconstruir, para além do género que nos atrai.

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Megafone P3: A (a)normalidade de ser queer Reuters/ANTON VAGANOV
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O que é a verdade e quem a define? Foucault concluiu que o poder e a verdade são interdependentes. Consideremos o conhecimento científico – a ciência define o que é normal num corpo, e a sua credibilidade é reconhecida, pois advém de uma figura de autoridade (médico ou cientista).

Foi a ciência que designou a não-heterossexualidade como “anormal”, logo, a ser medicamente curada. É esta relação de poder e verdade que, através de um conjunto de construções sociais que julgamos “naturais”, estabelece a hegemonia.

No fundo, é disto que se trata a heterossexualidade: uma ordem sexual (e não só) dominante, que rege os comportamentos como os mais normais possíveis, devido à sua ilusão de naturalidade. Porém, há quem alegue que a comunidade LGBTQ+ é já tão “normalizada” como a heterossexual.

Logicamente, a aprovação de leis como o casamento entre pessoas do mesmo sexo, em 2010, e a adopção por casais homossexuais, em 2016, são inevitáveis indicadores de progresso e, por isso, um aparente passo em direcção à “normalidade”.

O problema com a aprovação de tais leis é que prevêem que os sujeitos actuem de acordo com a ordem heterossexual, que não se foca apenas num regime sexual, mas também num regime sociopolítico.

Ser heterossexual não pressupõe apenas atracção por alguém do sexo oposto. Pressupõe, precisamente, o binarismo de género presente na frase anterior, tal como os seus papéis. Pressupõe um casamento, cujo fim deverá ser a formação de uma família nuclear.

Pressupõe um amor monogâmico e romântico, que repudia o casual e informal. Pressupõe até uma cidadania sexual restrita e uma economia política neoliberal. Encontramo-nos, portanto, perante a “homonormatividade”.

Significa que serão concedidos mais direitos aos gays e lésbicas que melhor imitarem a hegemonia heterossexual, passando a ser vistos como “bons cidadãos sexuais”! Logo, um pouco mais “normais”, um pouco mais aceites. E os outros?

Os trans, não binários e restantes corpos, por resistirem à directriz heterossexual, não merecem as regalias de um bom comportamento sexual e identitário?

Em 2011, entrou em vigor em Portugal a lei que cria o procedimento de mudança de sexo e nome no registo civil. Em 2018, com a lei da autodeterminação, deixa de se exigir um relatório médico, e permite-se a escolha de sexo, a partir dos 16. Mas não esqueçamos que antes de 2011 – há apenas 12 anos – para se alterar o nome, era obrigatório realizar “esterilizações compulsivas”, ou seja, cirurgia.

Não esqueçamos ainda que foi em 2006 – há apenas 17 anos – que Gisberta foi agredida, violada e assassinada por um grupo de jovens entre os 12 e os 16 anos. Hoje, estes têm entre 29 a 33 anos. Integram uma geração que, como de forma tão forçadamente ingénua se julga, aceita a comunidade queer.

Alterações à lei são cruciais para avanços em relação a qualquer direito, mas a sua necessidade é também prova de que a normalidade é um longo processo de consolidação de comportamentos, que rege gerações atrás de gerações. A aceitação de um corpo, sexualidade e identidade torna-se um direito exclusivo ao grupo de privilegiados que consegue reproduzir esses comportamentos, seja por motivos de sobrevivência ou alienação.

Mas serão mesmo as lésbicas e os gays os privilegiados que mais facilmente acedem aos direitos heterossexuais? Descurando questões de classe, género e etnia, sim, são. Ainda assim, estão longe de ser “normais”.

No mês passado, Mariana Mortágua assumiu publicamente a sua orientação sexual. Numa entrevista, questionaram se não teria atravessado uma “linha vermelha” com a sua posição pública. Mariana respondeu que, em nome da luta pela igualdade, era da sua responsabilidade fazê-lo, não olhando para a sua orientação sexual como uma fragilidade.

O jornalista insiste: “O que é que as pessoas têm a ver com as opções da vida privada de cada um?”. Numa simples pergunta, reflecte-se o que ainda falta para aceder à “normalidade” de ser. Ser heterossexual é o “natural”, e tudo o que não o seja, só poderá ter a ver com as “opções de cada um”.

Se a nossa inteligibilidade passa por uma performance de género, então essa pode provar-se consonante ou resistente à heteronormatividade. Por outras palavras, é possível resistir. É possível criar outra normalidade à margem do normal, onde todos os corpos são verdadeiramente livres de apenas ser. Relembremos o mês do orgulho enquanto mês de resistência, onde os “anormais” lutam por aquilo que desejam ser. Apenas isso: ser.

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