Ementas sustentáveis. “Há crianças que viram brócolos pela primeira vez na escola”

Ferramenta da Universidade do Porto, em parceria com a Direcção-Geral da Saúde, ajuda nutricionistas a planear ementas escolares (e agora também para outras idades) de forma sustentável.

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A redução do consumo de carne ainda gera muita resistência, mas o papel das escolas também é “educar para os sabores”, recorda a investigadora Ada Rocha Nelson Garrido
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Por esta altura do ano lectivo, muitas das ementas das cantinas escolares para o próximo ano já foram pensadas. É preciso garantir a disponibilidade dos alimentos que compõem as refeições saudáveis, tudo com antecedência para preparar os fornecedores. A nutricionista Marina Rodrigues, que trabalha na Câmara Municipal de Amares, em Braga, já tem preparadas as ementas para o próximo ano lectivo, trabalho feito com a ajuda de uma ferramenta da Universidade do Porto que traz um novo ponto para este planeamento: a sustentabilidade.

O programa SPARE Sistema de Planeamento e Avaliação de Refeições Escolares já existe desde 2009, num projecto da Faculdade de Ciências da Nutrição da Universidade do Porto (FCNAUP) com o apoio da Direcção-Geral da Saúde (DGS). Em Março deste ano, foi lançada a terceira versão do software, o SPARE+, com a qual passou a ser possível fazer o planeamento de jantares e ceias (e não apenas almoços) e avaliar a adequação nutricional das ementas planeadas para todas as faixas etárias (e não apenas crianças em idade escolar), conta a investigadora Ada Rocha, docente da FCNAUP que coordena o projecto. A tabela de composição dos alimentos foi actualizada, assim como a checklist para conferir se as ementas preparadas também cumprem critérios de sustentabilidade ambiental, uma preocupação cada vez maior.

Se planear as refeições em casa é uma tarefa às vezes desgastante, à escala de uma escola o trabalho multiplica-se: o equilíbrio nutricional é o requisito central, mas há também os constrangimentos do orçamento, os fornecedores para contactar, uma equipa para gerir, a logística da cozinha. Hoje pensa-se cada vez mais nas questões de sustentabilidade, como a inclusão de fruta da época e de alimentos de produção local. E, claro, é preciso que isto resulte numa ementa que crianças e adolescentes queiram comer, já que a escola é, para muitas delas, o único lugar onde têm acesso a uma refeição saudável.

A educação para uma alimentação saudável tem mesmo que começar em casa: “Há crianças que viram brócolos pela primeira vez na escola”, alerta a nutricionista Marina Rodrigues. A aceitação por parte das crianças é muitas vezes tão fraca que, “se formos cumprir tudo o que a checklist do SPARE+ recomenda, posso dizer que as crianças não saem alimentadas”, lamenta. “É preciso começar pelos pais e depois devagarinho com as crianças.”

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Não é fácil ter ementas 100% sustentáveis e com zero desperdício, mas há ferramentas para chegar mais perto disso Nelson Garrido

Para Marina Rodrigues, uma das ferramentas mais úteis do SPARE+ é a checklist de avaliação: depois de todo o trabalho a desenhar semanas a fio de refeições equilibradas, é a altura em que verifica, por exemplo, se as ementas são variadas, se escolheu sempre fruta da época ou hortícolas de produção local. Com a checklist, tem um apoio extra para avaliar a qualidade das ementas “a nível de saúde, da composição nutricional e agora a nível da sustentabilidade e do impacto ambiental”.

Este tipo de software de apoio à composição de ementas não é novidade no universo dos nutricionistas, mas o SPARE+ tem a grande vantagem de ser gratuito. Actualmente, a plataforma tem cerca de 850 utilizadores.

Mas, mesmo com a checklist, fazer uma ementa sustentável não é tão simples como se possa pensar. Em termos de concursos públicos, a nutricionista de Amares nota que não é possível, por exemplo, exigir que os fornecedores comprem ao comércio local. “Podemos dizer que 30% dos hortícolas adquiridos para confecção da sopa devem ser de origem local”, sugere. Além disso, nem sempre os produtores locais têm capacidade de produção suficiente para abastecer as cantinas escolares.

E há ainda a questão dos custos: muitas vezes, produtos congelados vindos de longe são mais baratos do que a produção local. A investigadora Ada Rocha, docente da FCNAUP e um dos participantes na avaliação de cantinas em diversas localidades, lamenta que, na altura de ponderar todos os factores na composição das ementas, a redução de custos muitas vezes ganha enquanto o planeta perde.

Opção vegetariana

A redução do consumo de carne é outro factor que ainda gera muita resistência, tanto dos pais como das crianças. Como recorda a investigadora Ada Rocha, o papel das escolas também é “educar para os sabores”, e por isso uma das recomendações é que, uma vez por mês, as cantinas procurem oferecer apenas a opção vegetariana, para habituar os alunos a novos paladares.

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Ada Rocha, professora da Faculdade de Ciências da Nutrição e Alimentação da Universidade do Porto Paulo Pimenta

Os últimos relatórios do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) confirmam que é preciso reduzir (não necessariamente eliminar) o consumo de carne, em particular carnes vermelhas, que têm uma enorme pegada ecológica. Mas essa transição alimentar implica uma longa e lenta mudança cultural.

As refeições vegetarianas nas escolas entraram na legislação em 2017. Hoje, já é obrigatório ter um prato vegetariano nas ementas nas cantinas a partir do 2.º ciclo, só que esta opção, em muitas escolas, não surge como uma alternativa ao lado de outros pratos de carne e peixe, relembra Ada Rocha, sendo preciso, por norma, reservar a refeição pelo menos na véspera para garantir a disponibilidade. Aliás, com a gestão das cantinas transferida para os municípios, não existem dados centralizados sobre a oferta de pratos vegetarianos nas escolas.

E a adesão nem sempre é muito grande: “Num universo de 400 refeições diárias nas escolas, tenho dois ou três vegetarianos”, descreve Marina Rodrigues, sobre as cantinas de Amares. Existe ainda a questão cultural, de apetência por determinados aromas, sabores e texturas. Para a nutricionista, a aposta tem sido na formação das cozinheiras para confeccionar diferentes pratos vegetarianos, para os tornar mais apelativos: “Os colegas vêem e depois pedem.”

Ainda persistem alguns mitos, por exemplo, sobre a dimensão nutricional das refeições vegetarianas. Marina Rodrigues afasta as inseguranças: “Desde que planeada, uma alimentação vegetariana é perfeitamente adequada.” Aliás, as crianças devem ser habituadas a pratos apenas de base vegetal desde o início da diversificação alimentar, o que não significa que tenham que ser 100% vegetarianas, mas simplesmente que se habituem a comer pratos com fontes de proteína que não sejam apenas de origem animal.

Desperdício

No que toca às ementas escolares, outro problema é que o resultado final pode estar longe do que foi idealizado: depois da ementa planeada, é preciso que ela seja efectivamente cumprida - por exemplo, empratar as refeições com as doses previstas e, por fim, que as crianças e jovens de facto comam tudo o que lhes é posto no prato. Como qualquer encarregado de educação sabe, esta é a parte mais difícil.

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Os pratos vegetarianos estão longe de ser os preferidos da maioria dos alunos. É preciso apostar na formação para confeccionar refeições vegetarianas mais apelativas

Para tentar reduzir a carne e o peixe, muitas vezes opta-se por refeições em que a principal fonte de proteína é o ovo. Mas aí entra-se noutro problema muito caro às questões da sustentabilidade: o desperdício.

A nutricionista Marina Rodrigues descreve que tem “maior desperdício de pratos de ovo do que pratos de peixe”. Já experimentou ovos mexidos, omelete, tortilha no forno. Em Amares, quando tentou o singelo ovo cozido como fonte principal de proteína no prato, não apenas se manteve o desperdício como surgiram “mais reclamações dos pais”. A investigadora Ada Rocha confirma, entre divertida e preocupada, que há pais que, perante a oferta do ovo como alternativa à carne ou ao peixe, chegam a acusar as autarquias de querer poupar algum dinheiro, ao invés de reconhecer a aposta na saúde.

No primeiro ciclo, onde só há um prato para todas as crianças, já há municípios que uma vez por mês fornecem o prato do dia sem carne ou peixe, nem ovos, só com leguminosas ou soja. Mas, na experiência de Marina Rodrigues, nem sempre é fácil: em Amares e Vila Verde, onde as nutricionistas tentaram introduzir estas refeições vegetarianas, os pais rejeitaram esta oferta de refeições vegetarianas sem outra escolha. A alternativa, naquele caso, foi “tentar ao máximo incluir alimentos de base vegetal no prato”.

Ada Rocha reconhece que nas cantinas o “desperdício zero é uma utopia” e “quantas mais opções tiver uma ementa, pior”. Mas desdramatiza a questão: nos refeitórios, onde tanta coisa é planeada com muita antecedência, é naturalmente difícil prever o número de alunos em cada dia.

Nas cantinas dos primeiros ciclos, ganham as escolas onde há um rácio maior de funcionários por aluno, ajudando a dar um empurrãozinho às crianças mais resistentes. Marina Rodrigues nota a diferença: numa escola de 300 crianças pode chegar a haver 50% de desperdício; com 50 crianças, onde provavelmente haverá uma proporção maior de pessoas no acompanhamento, é possível reduzir o desperdício a 10%.

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