A (in)autenticidade da educação

Lipovetsky defende o regresso à escola do conhecimento, já que a informação bruta não é sinónimo de conhecimento verdadeiro

Ouça este artigo
--:--
--:--

No livro A Sagração da Autenticidade, Gilles Lipovetsky sustenta que a hipermodernidade promove a consagração da autenticidade individual, ou seja, o primado do indivíduo, focado em si mesmo. Be yourself é a cultura da autenticidade, como refere em entrevista recente ao PÚBLICO.

A realização subjetiva desta expressão reconhece-se na personalização de práticas hiperconsumistas, organizadas num universo tecnocomercial que se impõe ao indivíduo por intermédio da lógica de sedução, de natureza pragmática e emocional, e ligada, em termos educativos, ao desenvolvimento, à autonomia e à felicidade das crianças e dos jovens.

E aqui está o argumento principal de Lipovetsky quando associa a autenticidade individual a uma educação compreensiva, que tem por raízes concetuais a Escola Nova, como se esta representasse as abordagens educativas na sua totalidade. A autenticidade da educação define-se pelas respostas singulares e não propriamente pela homogeneidade, tendo como dinâmica apelativa a sedução, através de um modo de educação aberto, cool, permissivo, com impacto na desvalorização do conhecimento e do prestígio intelectual.

Tal autenticidade estará, assim, alinhada em função dos desejos e dos interesses das crianças e dos jovens e não tanto em função do rigor da escola. À velocidade de um relâmpago, na perspetiva de Lipovetsky expressa no livro Agradar e Tocar, tal conceção de educação está associada ao desaparecimento da autoridade dos docentes, ao crescimento da apatia escolar e à desmotivação dos jovens face ao conhecimento escolar. Por conseguinte, a escola tornou-se num espaço de deceção, sendo responsável pela impreparação dos jovens para o mundo do trabalho. Do mesmo modo, o autor escreve que o elevador social da escola está seriamente avariado.

No livro Da Leveza, Lipovetsky fala do confronto entre as instituições pesadas tradicionais (tradições, família, Igreja e escola) e a revolução da leveza, que criou uma relação imediata com novos modos de aquisição do conhecimento, ou seja, através de vias muito mais fluidas, caso dos media e da Internet. Novas lógicas pedagógicas relacionadas com a cultura interativa do ecrã traduzem a autenticidade da educação, tornando mais presente o lúdico, o rápido, o acidental, o fragmentado e a ausência de condicionalismos, contribuindo per se para desqualificar as práticas escolares tradicionais, ou seja, os métodos escolares centrados no esforço, na disciplina, na lentidão, na progressividade controlada, bem como os exercícios que favorecem a memorização e a repetição.

Numa perspetiva de educação baseada em apropriações individuais, o conhecimento tende a ser mais leve. Daí que o filósofo defenda o regresso à escola do conhecimento, já que a informação bruta não é sinónimo de conhecimento verdadeiro, acrescentando: mais do que nunca precisamos de professores para transmitirem os saberes básicos, ensinarem os jovens a ler, a escrever, a contar e a compreender conceitos. Sublinha, ainda, que estar conectado à Internet não é suficiente para pensar, nem a tecnologia digital tem o poder de educar, caso não sejam utilizadas práticas metódicas de aprendizagem.

Por isso, Lipovetsky diz que o modelo autoritário-rigorista deixou de existir com o advento da criança-rei, uma vez que esta é educada a partir da pedagogia da sedução, que desqualifica o paradigma punitivo e consagra o modelo relacional, tolerante e hedonista.

Não contestando por completo o paradigma da educação-sedução, porque há vantagens que têm sido reconhecidas, por exemplo, as crianças e os jovens são menos inibidos, mais abertos, curiosos e empreendedores, o autor reconhece que o modelo pedagógico da sedução não deve ser totalmente erradicado, mas reorganizado, mantendo-se prioritários todos os princípios que favorecem o desenvolvimento da criança. Contudo, para Lipovetsky, a responsabilidade por uma educação mais permissiva cabe por inteiro às correntes da Escola Nova, inspiradas, entre outros, nos trabalhos de Piaget, Montessori, Freinet, Cousinet e Dewey.

Em A Sagração da Autenticidade, Lipovetsky analisa os impasses educativos da autenticidade, revelando que a ideia pedagógica de uma escola sem imposições originou a perda da autoridade dos professores e o crescimento do número de alunos incapazes de ler ou compreender textos. De uma forma mais frontal, o autor proclama que a Escola Nova destrói os valores do esforço e o respeito pelas autoridades educativas, ao mesmo tempo que provoca o reforço das desigualdades sociais e escolares. Na sua perspetiva, a cultura da autenticidade não é mais do que um paradigma pernicioso, com consequências catastróficas para a educação.

Porém, toda a argumentação pedagógica de Lipovetsky insere-se no coro da crítica cerrada a tais correntes, responsabilizando-as quer pela crise dos resultados de aprendizagem e pela permissividade escolar, quer pela destruição das aprendizagens de base. Aceitar esta abordagem seria declarar a inautenticidade da educação, essencialmente na defesa dos valores tradicionais da escola, cuja sustentação nos tempos de hoje é problemática.

Apesar de dizer que não devemos idealizar em excesso os méritos da escola tradicional, nem tão-pouco colocar no pelourinho os métodos ativos ou regressar à escola de outrora, e questionando se é possível imaginar o eclipse do princípio de sedução ao nível da educação, Lipovetsky, em Agradar e Tocar, escreve que, no plano das aprendizagens, o fracasso das pedagogias modernas é flagrante, pois não permitem a aquisição de competências escolares elementares.

Contudo, ao dizer que tais pedagogias não impedem o sucesso de alguns alunos, sobretudo daqueles cujos pais têm expetativas elevadas quanto ao mérito da educação, o autor não analisa com profundidade a questão socioeconómica, nem procura fundamentar-se em estudos que têm sido fulcrais para a análise dos fatores que podem explicar o sucesso/insucesso escolar.

Dizer que tais pedagogias foram incapazes de honrar a sua promessa de democratização, tendo ido demasiado longe na eliminação dos métodos tradicionais de ensinar, é quase tomar a árvore pela floresta e admitir o retorno à pedagogia da transmissão, em tempos em que o aprender mudou radicalmente, e muito mais mudará com as tecnologias de metaverso.

Com efeito, reconhecer a autenticidade da educação, numa perspetiva mais positiva daquela que é defendida por Lipovetsky, é argumentar que as verdadeiras necessidades e os reais valores das crianças e dos jovens são salvaguardados por uma aprendizagem baseada no conhecimento e nos problemas do mundo em que vivem, incluindo o papel ativo que têm cada vez mais as tecnologias digitais. Neste caso, é fundamental afirmar, por mais divergências que existam ao nível da educação, que cada tempo tem uma escola diferente, assim como cada geração tem um o seu currículo.

Posição contrária à de Lipovetsky tem a filósofa norte-americana Martha Nussbaum, para quem a imaginação, a criatividade e o pensamento crítico e rigoroso estão a perder espaço na escola. No livro Sem Fins Lucrativos, a autora advoga que, para manter a democracia de boa saúde, é necessário diferenciar uma educação para o lucro de uma educação para um estilo mais inclusivo de cidadania. Deste modo, afirma não só que a educação é para as pessoas, como também as escolas são uma força influente na vida das crianças e dos jovens, valorizando a educação democrática, participativa e inclusiva – a partir de, entre outros, Pestalozzi, Froebel e Dewey – e reconhecendo que a pedagogia por repetição predomina na aprendizagem escolar.

Retomando-se o pensamento de Lipovetsky sobre a educação, e se as críticas que faz ao fascínio digital são pertinentes, particularmente quando conclui que o uso intensivo da Internet não rima com prática inteligente, autorreflexiva e crítica, também é verdade, como sustenta, que é necessária uma educação para a Internet e que esta não pode ser reduzida nem ao copiar-colar, nem ao domínio da informação, nem às respostas geradas por modelos estatísticos, como os da inteligência artificial.

Para o momento presente, Lipovetsky diz que a escola exigente é aquela que permite aos jovens distinguir e hierarquizar informação, diferenciar textos e avaliar a fiabilidade do que é afirmado. Será a escola não da informação, mas do pensamento e do estudo inteligente. Como valor comum, a educação deve promover a mobilidade social e evitar transformar-se num bem de consumo, caso contrário tornar-se-á num desmesurado perigo democrático.


O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1990

Sugerir correcção
Ler 1 comentários