O que a pandemia fez aos alunos está a emergir e pode ser pior do que se antevia

Directores alertaram Parlamento para “consequências desastrosas” nas aprendizagens. Há também cada vez mais alunos sinalizados devido a distúrbios de natureza psicológica e social.

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Alunos de meios desfavorecidos foram os maiss prejudicados pelo fecho das escolas Daniel Rocha

“Temos receio de perder esta luta.” O desabafo partiu do presidente da Associação Nacional de Dirigentes Escolares (ANDE), Manuel Pereira, durante uma reunião com deputados realizada nesta terça-feira a propósito do plano de recuperação de aprendizagens em curso nas escolas. E não, não teve que ver com este plano, que motivou outros tantos diagnósticos de choque por parte dos directores presentes na sessão.

Aquilo a que Manuel Pereira se referia é mais desestruturante por ter que ver com algo que condiciona tudo o resto. “A pandemia alterou substancialmente a forma de estar dos alunos das escolas. Estão desmotivados, desinteressados”, relatou o também director do Agrupamento de Escolas de Cinfães, dando conta por isso de que as escolas poderão precisar de um “novo plano”, desta vez “destinado a ganhar os alunos novamente”. O desabafo, pesado, irrompeu aqui: “Temos receio de perder esta luta.”

A ANDE e a Associação Nacional de Directores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) foram convidadas pela Assembleia da República para uma audição pelo Grupo de Trabalho de Acompanhamento do Plano de Recuperação de Aprendizagens, constituído por deputados da Comissão Parlamentar da Educação. O plano em causa é o chamado “Plano 21/23 Escola+”, lançado há dois anos pelo Ministério da Educação para promover a recuperação das aprendizagens perdidas durante o fecho das escolas provocado pela pandemia e o ensino remoto então levado por diante.

Nas escolas, disseram os directores, é conhecido simplesmente por “PRA”, de plano de recuperação de aprendizagens. O seu terceiro relatório de monitorização, no caso relativo ao ano lectivo em curso, foi publicado este mês pela Direcção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência (DGEEC), em que se destaca que as medidas avaliadas pelas escolas são os chamados “planos de desenvolvimento pessoal, social e comunitário” e a promoção da leitura, através da acção designada como Escola a Ler.

Os directores confirmaram que assim é, embora o vice-presidente da ANAEP, David Sousa, tenha destacado que “falta ainda saber a eficácia efectiva” das medidas incluídas no PRA. “É agora que se está a começar a sentir, de facto, os impactos dos confinamentos [de dois anos provocados pela covid-19], justificou. E também é que agora que se começam “a revelar as implicações das transições facilitadas” de ano, ocorridas neste período.

E o que se está a revelar é que a falta de aulas durante a pandemia tem “consequências absolutamente arrasadoras para as aprendizagens estruturantes”, destacou o também director do Agrupamento de Escolas Frei Gonçalo de Azevedo, em Cascais, nomeadamente no que respeita aos alunos oriundos “de contextos mais desfavorecidos”, cujos pais “não têm meios para pagarem explicações” ou para disponibilizarem outros meios de aprendizagem, todos aqueles para quem “é a escola que faz a diferença”.

Estas “consequências arrasadoras”, que estão a ser sentidas “diariamente nas escolas”, traduzem-se numa “falta de aprendizagens estruturantes que, por não terem ocorrido, bloqueiam” todo o processo, “impedindo a progressão” no caminho de aprender, especificou David Sousa.

Sinalizações estão a aumentar

Também o presidente da ANDAEP, Filinto Lima, director do Agrupamento de Escolas Dr. Costa Matos, Vila Nova de Gaia, salientou que este “é o primeiro ano por inteiro do Plano 21/23”. “Até Fevereiro de 2022, as escolas estiveram a gerir a covid-19, muito mais do que as questões pedagógicas”, justifica. É uma das razões pelas quais os directores têm defendido a prorrogação deste plano, pelo menos por mais um ano lectivo.

A outra são os recursos humanos suplementares garantidos por via do plano de recuperação de aprendizagens: mais 3300 docentes e 1169 técnicos especializados, entre psicólogos, terapeutas da fala assistentes sociais e técnicos de informática. Salientam os directores que estes são recursos “essenciais” não só para colmatar a escassez de professores que se tem agravado nos últimos anos, como para permitir que as escolas tenham respostas a dar a questões cada vez mais prementes de ordem social, psicológica e não só.

São estas respostas, asseguradas pelos técnicos especializados, que estão no centro dos planos de desenvolvimento pessoal, social e comunitário, os quais se têm revelado “essenciais” para fazer face “às consequências da pandemia na saúde mental e no rendimento dos alunos”, sublinha o dirigente da ANDE Jorge Saleiro, director do Agrupamento de Escolas de Barcelos. Apesar de “não se encontrarem ainda plenamente identificadas”, têm-se já traduzido num “crescimento muito grande do número de alunos sinalizados junto das comissões de protecção de jovens e dos serviços de psicologia” das escolas, alertou.

Motivar e respeitar os professores

Por outro lado, corrobora este director, os novos professores que chegaram às escolas por via do plano de recuperação são “também uma forma de compensar o envelhecimento” da classe docente, com as consequentes saídas para a aposentação (só este ano serão cerca de 3300).

Este abandono, em conjunto com a falta de novos candidatos à profissão docente, leva a que a educação esteja “a entrar noutra pandemia que é a da escassez de professores”, alertou de novo Filinto Lima. É esta escassez que leva a que haja alunos sem professores durante quase todo o ano lectivo, e não as greves de docentes dos últimos meses, que estão a afectar a recuperação das aprendizagens, acrescentou o presidente da ANDE.

De modo unânime, as duas associações pronunciaram-se pela “valorização da classe docente”, o que terá de passar pela “recuperação de todo o tempo de serviço congelado, uma avaliação de desempenho mais justa e uma valorização salarial”. “Se isto fosse feito, poderíamos hastear a bandeira da paz. Mas o que temos é uma guerra sem fim à vista”, concluiu Filinto Lima. “É preciso com urgência motivar os professores e respeitá-los”, resumiu Manuel Pereira.

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