De Wall Street à Praça do Império

Portugal não ter ainda um ou vários memoriais e museus dedicados ao flagelo da escravatura é uma questão da maior relevância à qual deveria ser reconhecida mais urgência na agenda política.

Há umas décadas a viver em Nova Iorque, trabalhei como editor de uma revista para as comunidades portuguesas dos Estados Unidos. Maioritariamente procurávamos apresentar histórias de sucesso da emigração portuguesa: o empresário que tinha emigrado com apenas 20 dólares no bolso e acabou a gerir empresas multimilionárias, o jovem que se destacou numa grande universidade e passou a ser um cientista de referência, as estrelas do cinema, teatro e televisão – a nossa pequena equipa investigava as biografias de todas as figuras públicas que contavam com um apelido vagamente português e procurava falar com elas e contar as suas histórias.

Por outro lado, sempre que apropriado, e sempre que houvesse quem o escrevesse, publicávamos alguns artigos sobre figuras luso-americanas que se tivessem destacado na História do país. No entanto, durante esses anos nunca me deparei com os nomes de alguns emigrantes lusos de maior sucesso financeiro e até de destacada posição social na alta sociedade nova-iorquina dos meados do séc. XIX. Nomes como Manoel Cunha Reis ou José da Silva Maia Ferreira poderiam ser figuras de capa de revista numa publicação luso-americana do séc. XIX. Mesmo que a sua riqueza e proeminência social em Nova Iorque fossem secretamente geradas por um comércio já ilegalizado: o tráfico de pessoas escravizadas.

Quando se fala do papel de Portugal na escravatura fala-se sobretudo dos três séculos e meio de comércio de pessoas escravizadas de África para o Novo Mundo. Não sendo o único país responsável pelo tráfico negreiro transatlântico, o desdenhável papel pioneiro de Portugal na massificação do comércio de seres humanos é incontornável.

Estima-se que cerca de 24 milhões de pessoas tenham sido capturadas, do interior ao litoral africano, tendo morrido praticamente metade antes mesmo de embarcar, sobrando 12,5 milhões de cativos que foram transportados para o outro lado do Atlântico. Desses, apenas 10,7 milhões chegaram aos portos do continente americano.

Os números transformados em imagens com animação em mapas interactivos, como o assombroso time-lapse de séculos de tráfico, podem ser consultados no site Slave Voyages, onde dá para ficar com uma terrível ideia da dimensão da tragédia.

Quando nos inícios do séc. XIX o comércio de escravos se tornou ilegal, o transporte de seres humanos para o continente americano não parou. Em alguns casos terá até aumentado, dada a necessidade de mão-de-obra para as plantações em Cuba e no sul dos Estados Unidos. Entre o início do séc. XIX e o ano de 1860, cerca de 4 milhões de cativos foram forçados a deixar a sua terra em África – sensivelmente um terço do número total de seres humanos traficado nos três séculos e meio anteriores. Os lucros aumentaram exponencialmente, chegando por vezes o retorno sobre investimentos aos 300%. No entanto, os riscos eram maiores: se os navios negreiros acabassem capturados pela Marinha Britânica, ou a taxa de mortalidade a bordo fosse excessiva, o investimento acabava em prejuízo.

É nesta fase que, em Nova Iorque, um grupo de mercadores e negreiros portugueses, exilados nos Estados Unidos após a abolição do comércio escravo no Brasil, estabelece na cidade um núcleo conhecido por The Portuguese Company. Com navios construídos nos Estados Unidos, a velejar com bandeiras norte-americanas, o que impediam serem interceptados pelos navios britânicos do Esquadrão de África, a Companhia Portuguesa de Nova Iorque geria na clandestinidade um negócio milionário de tráfico humano para a América do Norte, fazendo uma fortuna que proporcionava aos proprietários um lugar de destaque na alta sociedade nova-iorquina.

Manoel Cunha Reis e José da Silva Maia Ferreira eram os nomes de referência dos mercadores portugueses que, entre outros conterrâneos, como João Alberto Machado ou José Mora, tinham escritórios e lojas no que agora é Wall Street. Eram pessoas respeitadas na sociedade, casados com senhoras americanas da aristocracia local. São histórias de sucesso de emigrantes portugueses em NY, só que, por detrás, há um rasto de morte e sofrimento.

Daria um filme? Sim, já o estou a escrever, mas não é essa a razão desta lição de História autodidacta. Apesar de o arrumarmos, confortavelmente, no passado, o tema da escravidão continua pertinente no presente, e não tem sido verdadeiramente encarado e discutido na sociedade portuguesa.

Como afirma Saidiya Hartman, escritora e académica especialista em Estudos Afro-americanos, “toda esta morte foi relacionada com a aquisição de lucro e o crescimento do capitalismo”. Ou, para citar Sven Lindqvist, na conclusão do seu livro Exterminem Todas As Bestas: Não é conhecimento que falta. O público geral informado sempre soube que crimes foram cometidos e estão a ser cometidos em nome do Progresso, da Civilização, do Socialismo, da Democracia e do Mercado. [...] Não é de informação que carecemos. O que nos falta é a coragem para compreender o que sabemos e tirar conclusões.

Portugal não ter ainda um ou vários memoriais e museus dedicados ao flagelo da escravatura é uma questão da maior relevância à qual deveria ser reconhecida mais urgência na agenda política.

Ver que não foi ainda criado o memorial às vítimas da escravatura, aprovado em 2020, em Lisboa, enquanto foram já empedrados os símbolos da ex-colónias na Praça do Império, numa manifestação anacrónica de orgulho do Estado Novo, fez-me pensar na frase batida normalmente atribuída a Edward Burke (embora seja uma paráfrase):

Para que o mal triunfe, basta os homens bons não fazerem nada.

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