“Porque é que eu vou separar o lixo se pago mais de 20 euros de resíduos por mês?”

As falhas do sistema de gestão de resíduos parecem mais pesadas quando é a restauração a carregá-las e, onde faltam incentivos e comodidade, não faltam sacos com lixo indiferenciado.

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Falta de formação, infra-estruturas e incentivos económicos agravam o problema dos resíduos na restauração Tiago Bernardo Lopes

Lixo, há muito. E, se for num restaurante ou café, ainda há mais. Todos os dias, José Larroque vê sair cerca de quatro sacos de resíduos em direcção aos contentores coloridos, que, felizmente, estão à porta do estabelecimento do qual é gerente. No snack-bar de Ricardo Carvalho, em pleno centro do Porto, há dias que deixam um rasto de seis sacos cheios e de funcionários “constantemente a levar o lixo”. Por outro lado, “passear o lixo” está entre as coisas que Andreia Ribeiro mais detesta fazer – mas é difícil evitá-lo quando, ao fim-de-semana, os resíduos provenientes do café gerido pela mãe, Sandra Ribeiro, enchem facilmente um saco de cem litros.

O facto de o lixo do canal Horeca (de hotéis, restaurantes e cafés) ser tratado juntamente com outros resíduos urbanos faz com que não existam, até ao momento, dados sobre a sua quantidade. Este cenário pode mudar, já que a Associação da Hotelaria, Restauração e Similares de Portugal (Ahresp) tem um questionário aberto, para diagnosticar o estado da reciclagem dentro do sector.

Mas, com ou sem números, uma coisa é certa: estes estabelecimentos caracterizam-se por lidar com produtos descartáveis – que vão dos guardanapos às embalagens de take-away – e produzir dezenas de refeições, onde o que não é consumido resulta, ora em biorresíduos, ora em desperdício alimentar.

Num sector que Andreia Barbosa, vice-presidente da associação Circular Economy Portugal, descreve como “complicado”, a alta rotatividade de empregados e constrangimentos de espaço e tempo fazem com que, muitas vezes, vá parar tudo ao mesmo saco e o potencial de centenas de materiais não seja aproveitado.

Adicionando-se uma gestão pública de resíduos cujo peso das falhas parece maior quando são estabelecimentos comerciais a carregá-lo, a equação acaba a multiplicar a realidade de Ricardo, José e Sandra por milhares de cafés, bares e restaurantes portugueses.

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Andreia Ribeiro (esquerda) e Sandra Ribeiro, gerente do café localizado no bairro do Falcão Tiago Bernardo Lopes

Taxa de gestão de resíduos “não reflecte o real uso do serviço”

Tal como nas nossas casas, a factura da água que chega a um café no final do mês contempla uma taxa de gestão de resíduos, calculada em função do consumo de água. No uso doméstico, a ideia faz sentido: “Se somos uma família de cinco pessoas e consumimos mais água, então fazemos mais resíduos e devemos pagar mais do que uma família de três pessoas”, afirma Andreia Barbosa, autora do ensaio O Lixo em Portugal, publicado pela Fundação Francisco Manuel dos Santos. Contudo, o valor pago “não reflecte o real uso do serviço” e, para os restaurantes, há um desfasamento ainda maior – que “não é justo e não permite financiar uma melhor gestão”.

“Eles [restaurantes] têm uma actividade económica em que a produção de resíduos é muito expressiva e em que não há maneira de olhar para a forma como os estão a gerir. A taxa não reflecte se produzem muito lixo ou não, se o separam ou não”, explica. Isto faz com que os estabelecimentos – que são, em boa parte, negócios de família, com pouco espaço, pessoal e tempo – não vejam, muitas vezes, a separação como uma prioridade, por não colherem dela nenhum ganho imediato.

E, com isto, Sandra Ribeiro concorda: “Porque é que eu vou separar o lixo se, na minha factura da água, pago para cima de 20 euros de resíduos por mês? Na factura, não olham para o trabalho que estou a ter.” Se tivesse algum benefício económico por fazer a separação, era “lógico” que o faria, afirma.

“É passear o lixo, literalmente”

Andreia Ribeiro, que apoia a mãe na gestão do espaço no bairro portuense do Falcão, acrescenta que a “pressão” do trabalho contribui para que “acabe por ir tudo para um só caixote”. Além disso, com um ecoponto que parece estar cada vez mais afastado do café, transportar um saco para cada tipo de resíduo torna-se desconfortável. “Antes, tínhamos um aqui perto. Entretanto, foi movido para longe e, agora, ainda mais longe está! Não vou com três sacos atrás de mim. É passear o lixo, literalmente”, confessa.

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Actualmente, a tarifa de gestão de resíduos não é dependente de estes estarem separados Tiago Bernardo Lopes

Como gerentes de estabelecimentos em zonas centrais da cidade do Porto, Ricardo Carvalho e José Larroque contam que a separação dos resíduos já faz parte do seu dia-a-dia, mas o facto de terem os ecopontos por perto é, sem dúvida, uma vantagem.

Ricardo Carvalho acrescenta até que, devido à falta de espaço, tanto ele como os funcionários vão levar o lixo várias vezes por dia, de forma a ser possível separar sem terem de armazenar caixas de cartão ou garrafas de vidro, o que só se torna viável com contentores quase à porta. José Larroque vai ainda mais longe, admitindo que, se não fosse pelo ecoponto a poucos metros, “provavelmente não separava”.

A verdade é que evitar as grandes quantidades de resíduos passa por mudanças nos próprios estabelecimentos, que podem optar por coisas tão simples como devolver garrafas de vidro aos fornecedores ou servir água da torneira filtrada – uma solução sugerida por Andreia Barbosa e cujas vantagens e desvantagens estão a ser estudadas por Ricardo Carvalho. Mas a ideia de que os cafés e restaurantes são os únicos responsáveis pela gestão do lixo evita melhorias estruturais necessárias.

Os testemunhos partilhados com o PÚBLICO revelam, para a vice-presidente da Circular Economy Portugal, problemas do próprio sistema de gestão de resíduos, cujo desenho “não está correcto”. Para tornar a separação dos resíduos mais cómoda, “deveria haver algum tipo de incentivo financeiro e uma preocupação a nível das estruturas de recolha que facilitasse aos actores económicos da restauração uma gestão mais correcta”, comenta Andreia Barbosa.

Uma revisão da tarifa de resíduos de forma que o lixo separado tivesse custos mínimos ou nulos, como num sistema PAYT (da expressão em inglês pay-as-you-throw, ou “paga o que poluis”), seria “interessante”, diz, e os municípios da Maia e Guimarães já estão a dar passos nesse sentido. Mas, por vezes, basta algo tão simples como um ecoponto por perto – e os casos de Ricardo e José provam isso.

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Ricardo Carvalho é gerente de um snack-bar no centro do Porto Tiago Bernardo Lopes

Lixo de uns, tesouro (contaminado) de outros

Quando sujeitos a uma separação correcta, os resíduos orgânicos, que podem ser transformados em adubo, são o lixo mais importante que sai de um restaurante. “Há uma grande quantidade deste tipo de resíduos a ser produzida diariamente nestes locais e isso é uma óptima oportunidade de os captar por via selectiva, se calhar melhor do que nas casas das pessoas”, atira Andreia Barbosa, em conversa com o PÚBLICO.

Para o ensaio da sua autoria, Andreia Barbosa falou com várias entidades de recolha de biorresíduos e com actores do canal Horeca, e o que descobriu surpreendeu-a: uma família motivada por um sistema de recolha porta a porta de resíduos tem muito cuidado na separação e consegue um material de boa qualidade, o que não acontece nos restaurantes. No sector, apesar de muitos sítios aderirem à recolha de biorresíduos quando os municípios abrem a possibilidade, o composto acaba comprometido.

“Resíduos que supostamente são orgânicos e estão separados acabam misturados com embalagens, plástico, metal, vidro”, relata. Os motivos? “Não há formação e sensibilização do pessoal para a separação, não há tempo nem capacidade para monitorizar se isso está a ser feito e, portanto, a contaminação vai acontecendo”, acrescenta. A logística também dificulta o processo, quando o típico restaurante português é “bastante pequeno” e não há espaço para manter uma separação rigorosa.

No concelho do Porto, a recolha de resíduos orgânicos é possível, mas nenhum dos três estabelecimentos visitados pelo PÚBLICO está, actualmente, a separá-los. José justifica-o com o “trabalho” que isso daria, e Ricardo diz que, num snack-bar, não serve pratos que criem resíduos como cascas ou sobras.

Já Sandra esperava receber um contentor de biorresíduos para colocar no café, mas ele nunca chegou. “Veio cá uma senhora do ambiente e trouxeram um caixote para a mercearia do lado, mas não trouxeram para mim. Eu não vou andar sempre a ligar para a câmara a perguntar pelo meu caixote do lixo”, opina.

“Não se pode deitar comida fora”

Quando o Instituto Nacional de Estatística (INE) e o Eurostat mediram pela primeira vez o desperdício alimentar em Portugal, revelaram que é o quarto país da União Europeia onde se desperdiça mais. Nos restaurantes, o desperdício alimentar por habitante atinge quase o dobro da média europeia: foram 23 quilogramas por habitante em 2020, face aos 12 registados na UE.

Numa análise de 2014, a Comissão Europeia atribuiu 14% do desperdício alimentar nos Estados-membros ao canal Horeca, apontando problemas logísticos como as dificuldades em antecipar o número de clientes, porções demasiado grandes e o facto de levar as sobras para casa não ser culturalmente apreciado em vários países europeus.

A verdade é que o desperdício alimentar, dentro e fora do restaurante, tem uma grande componente psicológica. Um dos motivos pelos quais doses grandes ou buffets são altamente apreciados tem que ver com a tranquilidade transmitida pelo acesso a mais do que se precisa. “A ideia de faltar é desagradável para nós e acabamos por construir sistemas dos quais o excesso faz parte. O problema é que a margem de excesso é mesmo isso: excessiva”, defende Andreia Barbosa.

Em Portugal, especificamente, apreciar uma grande porção de comida que deixa restos no prato é cultura. “Nós, portugueses, valorizamos imenso o sermos bem servidos e os negócios respondem a esse desejo servindo doses gigantes”, continua. Uma das formas de combater o desperdício alimentar seria pedir ao estabelecimento uma embalagem – ou trazer a própria – para levar o resto embora, “mas, culturalmente, isso não é a coisa a fazer”.

Para um restaurante, “chegar a um equilíbrio e fazer doses mais em conformidade com o que a pessoa vai comer quando há ali uma experiência tão pessoal e positiva no excesso é mesmo muito complicado”, diz a vice-presidente da Circular Economy Portugal. Num local frequentado sempre pelos “clientes do costume”, como é o caso do café de Sandra Ribeiro, é, por vezes, possível cozinhar e servir doses proporcionais ao que é consumido, mas a situação é excepcional. Já as refeições não vendidas têm um destino comum nos estabelecimentos de Sandra, Ricardo e José: a casa de gerentes e funcionários. “É o nosso jantar. Não se pode deitar comida fora”, remata José Larroque.

No lado do cliente, incutir a ideia de que não faz mal guardar o que sobra para outra altura parece ser um caminho a seguir para mitigar o desperdício alimentar a partir de uma das suas fontes. Os gerentes de restauração que falaram com o PÚBLICO concordam com a ideia, e já há projectos com o objectivo de incentivar a prática, como o movimento “Take It”, da associação Zero, ou o “Embrulha”, da Lipor. Se o primeiro promove a reutilização das embalagens para o efeito, o último fornece caixas de take-away recicláveis.

A chave para a mudança

Falar em resíduos do sector da restauração é falar das embalagens de take-away. Um estudo publicado na revista científica Resources, Conservation and Recycling em 2021 atribui o aumento da procura por este formato de venda durante e no pós-pandemia de covid-19 ao maior uso de embalagens descartáveis. Sendo, muitas vezes, de plástico ou de alumínio, as embalagens que não são separadas para reciclagem podem ficar milhares de anos num aterro sanitário.

Num cenário em que os investigadores prevêem que este tipo de poluição se intensifique devido à comodidade cada vez maior do take-away, a legislação já está a trabalhar para mitigar a questão e incentivar os consumidores a usar o próprio recipiente. Em Portugal, as embalagens de plástico estão sujeitas a uma taxa de 30 cêntimos desde Junho de 2022 e, a partir de Setembro deste ano, o mesmo se aplicará às de alumínio.

Contudo, a Zero notou, na altura em que a lei entrou oficialmente em vigor, que há embalagens que, apesar de serem feitas de cartão e não contempladas pela tarifa, são compostas por um invólucro de plástico para não permitir que a comida vaze, o que faz com que estas acabem num aterro sanitário por não serem facilmente recicláveis. O grupo ambientalista defende, assim, a cobrança imediata de todo o tipo de embalagens descartáveis na restauração, de forma a obter resultados positivos semelhantes aos da taxa aplicada aos sacos de compras: as pessoas começaram a trazê-los de casa.

Já no que concerne ao desperdício alimentar, a Comissão Europeia promete legislação para o mitigar em todos os Estados-membros até ao final de 2023, no âmbito da estratégia “Do Prado ao Prato”. Aliás, a temática está a ser estendida às pessoas, com a terceira e última sessão dos Painéis de Cidadãos sobre desperdício alimentar a decorrer este fim-de-semana em Bruxelas.

“A informação tem um poder" e se quem gere o restaurante "realmente perceber que é um elo numa cadeia e que o processo que está ali a implementar tem consequências, isso faz a diferença”, conclui Andreia Barbosa. Numa resposta ao PÚBLICO por email, Ana Jacinto, secretária-geral da Ahresp, acrescenta que isto pode passar também por clientes e hóspedes através de acções de sensibilização, “já que a colaboração destes é imprescindível para que as empresas sejam cada vez mais sustentáveis”. Ambas concordam: legislar é importante, mas ensinar é a chave certa para a mudança.