Não será altura de melhorar a vida das crianças?

Com vista à garantia dos direitos da criança (Nações Unidas, 1989), urge estruturar, para o sistema português, um plano estratégico de desinstitucionalização progressivo.

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Daniel Rocha/Arquivo

1.
As quimeras nascem assim, feitas de novas reflexões construtivas sobre o devir das instituições e dos sistemas que nos regem.

Também no que tange ao sistema de promoção e protecção das crianças e jovens em perigo em Portugal (doravante SPPCJ) se torna necessário agitar as águas, não à boleia de algum caso social que tenha feito abrir os noticiários deste país, mas por força da indómita vontade de agilizar tempos e de olear a máquina, retirando dela a areia que, tantas vezes, faz um atrito desnecessário na suprema missão do Estado e de todos nós de dar à infância a excelência que ela merece, na douta e visada palavra de Armando Leandro, senador do sistema e meu mestre.

2.
Com este propósito em mente, foi conduzido um estudo, publicado em Dezembro de 2022, na revista portuguesa Temas Sociais, da autoria de Elisete Diogo, Bárbara Mourão Sacur e Paulo Guerra, três profissionais oriundos de diferentes áreas científicas (Serviço Social, Psicologia e Direito, respectivamente), com vasta experiência na intervenção, formação e investigação na temática.

O artigo (intitulado “Caminhos para uma reforma do Sistema de Promoção e Protecção das Crianças e Jovens – Recomendações”) permite compreender a realidade actual e tece recomendações fundamentadas para a reforma do sistema português de promoção e protecção de crianças e jovens, centradas em dois eixos: alterações à lei e alterações em termos da gestão.

Não entendemos que seja imperiosa uma revolução, pois o paradigma encontrado na revisão operada em Portugal no Direito das Crianças e dos Jovens em 1999, entrada em vigor em 2001, é o certo, carecendo, não obstante, de um conjunto de mudanças estruturais e legais com vista à operacionalização da sua eficácia e da desejável integração de todos os sectores convocados pelo dito Sistema.

Esta publicação emerge num momento charneira em Portugal e na Europa.

Em 2020 e 2021 assistimos ao lançamento de três instrumentos basilares para os direitos e protecção da criança: a Estratégia Nacional para os Direitos das Crianças, a Estratégia Europeia para os Direitos das Crianças e a Garantia Europeia para a Infância.

A Estratégia Europeia para os Direitos da Criança (Recomendação do Conselho 2021/1004, de 14/06) e a Garantia Europeia para a Infância (Comissão Europeia, 2021) incentivam à desinstitucionalização, através da promoção de respostas de acolhimento em contexto familiar e/ou comunitário de qualidade, designado de Quality family and community-based care.

Com vista à garantia dos direitos da criança (Nações Unidas, 1989), urge estruturar, para o sistema português, um plano estratégico de desinstitucionalização progressivo e, por isso, ambicioso.

3.
Ficam aqui, de forma sumária e enunciativa, as recomendações.

3.1. Ao nível das alterações na lei:

a) Revisão do artigo 35.º da LPCJP (renomeação e reconceptualização das medidas de promoção e protecção);

b) Defesa do termo “criança” em detrimento do termo “menor” e aposta numa especialização nacional dos tribunais, passando a abranger também as até agora esquecidas comarcas de Bragança, Guarda e Portalegre;

c) Inclusão de norma para permitir a readmissão no sistema de promoção e protecção de crianças e jovens após os 18 anos;

d) Prorrogação das actuais medidas a executar em meio natural de vida até aos 25 anos de idade;

e) Permissão para uma criança ser adoptada para além dos 15 anos;

f) Aposta no incremento do Apadrinhamento Civil, que pode ter de passar pela premência de atribuir apoio económico às pessoas ou famílias que apadrinhem civilmente crianças.

3.2. Já ao nível das alterações na gestão, pugnamos pela:

a) criação da figura do “Provedor da Criança”, a exemplo do que existe, de forma autónoma, em tantos países do mundo;

b) criação de um Conselho Nacional para a Protecção das Crianças – assim, defendemos a

  1. Criação de uma nova coordenação nacional — integrando outras entidades já existentes — que viabilize a governação e a integração do SPPCJ, convergindo as funções actualmente executadas pelo ISS, I.P. e pela Comissão Nacional da Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens no que diz respeito à formulação de orientações no âmbito da promoção e protecção, desenvolvendo uma abordagem intersectorial de protecção de crianças em situação de fragilidade, entre outras atribuições; e apresentando os seguintes objectivos: actuar como autoridade nacional tendo como missão planear, coordenar e implementar as políticas de promoção dos direitos e de protecção de crianças e jovens; orientar os vários organismos e serviços do SPPCJ; bem como assegurar a monitorização, a recolha e a publicação de dados, elaborando um boletim anual estatístico;
  2. A implementação da coordenação através de um estudo piloto num conjunto de municípios representativos da diversidade geográfica nacional, com vista a aferir os resultados e os impactos no SPPCJ;

c) mudança ao nível da recolha, monitorização e publicação de dados — aí urge desenvolver um boletim anual de dados estatísticos sobre as medidas de promoção e protecção com a apresentação de dados nacionais agregados, urge criar um grupo de trabalho para desenvolver o boletim anual de dados estatísticos, com a integração de membros dos organismos públicos que intervêm directamente na recolha e monitorização de dados sobre as medidas de promoção e protecção; e urge considerar metodologias quantitativas e qualitativas para a recolha de dados e reunir informação junto dos vários intervenientes — crianças, profissionais, famílias, famílias de acolhimento e comunidade.

4.
Defendemos o incremento de um acompanhamento próximo, económico, educacional e social, que capacite verdadeiramente as pessoas que acolhem crianças em perigo (não basta dar dinheiro pois ele, por si só, não faz milagres).

Ficam aqui estas propostas, a tempo ainda de poder influenciar algum actual ímpeto legislativo nesta matéria.

As crianças deste país agradecem e reclamam essa atenção, mesmo que não votem.

Ali, tão perto de cada um de nós, o espectáculo nunca cessa, a vida segue adiante com as mesmas enxergas e vazios, as mesmas dores e negligências, os mesmos anseios e poemas de dia e noite.

Sei que a cantiga do bandido ecoa pela noite dentro, mesmo que as fadas cintilem e nos deixem voar.

A mortalha dos desafortunados martiriza-nos, mesmo que os Verões sejam mais Invernos mal-amados.

Não temos por aí bolas de cristal.

Nem figurinos e lantejoulas.

Só momos e violinos atrapalhados, baleias azuis e rumores de pouca sorte.

Mas, acreditem, ainda se ouvem os tambores.

E o afago daquele “trabalhador da infância” que deixa a sua casa para ir cuidar dos filhos dos outros.

Ainda se ouve, por aqui, o choro do João e da Mariana.

Para nunca mais nos deixarem e porque, afinal, como Maria do Rosário Pedreira tão bem reza, “hoje os deuses ainda passam os olhos pelas suas casas todas as noites, antes de adormecerem”.

Aqui chegados, não será altura de melhorar a vida das crianças em vez de só discutir a sua protecção?

É que não tenhamos ilusões — o poder só é necessário para fazer o mal.

Para fazer todo o resto, muitas vezes basta o amor e o afecto, um valor jurídico-constitucional também em Portugal.

Como o lema, em 2019, da Campanha Nacional para Prevenção dos Maus Tratos na Infância, gizado pelas CPCJ, “serei o que me quiseres dar… e que seja amor!”.

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